sábado, 27 de dezembro de 2008

Casa da Magia


Lá dentro havia seda, havia algodão e havia linho.

Lá dentro havia ouro, havia prata e havia platina.

Lá dentro havia riso, havia sorriso e havia felicidade.

Lá dentro havia tudo de espectacular e tu não passavas perto da porta.

Nem sequer rodeavas, nem sequer uma ponta de curiosidade e eu roía-me só de magicar como tal seria possível.

Tudo o que toda a gente desejou, em todos os tempos, estava ali. E tu aqui, sem mexeres nenhuma parte de ti.

A explicação estava contigo e mais ninguém. Eras o único da aldeia que nunca tinha sequer espreitado a casa de magia. E não era uma magia qualquer, dessas que são inventadas e nos tapam os olhos, era uma magia real e única.

Estudiosos davam voltas ao que tinham e não tinham para descobrir tal fenómeno mas todos os estudos foram inconcluídos por escassez de dados concretos.

Pedi-te uma vez que fosses lá comigo e, sem resposta, desapareceste durante três semanas.

Pedi-te outra vez que me levasses só a espreitar, com a desculpa do medo e, sem resposta, desapareceste durante três meses.

Perguntei-te, então, se a tal casa teria sido obra tua e, sem resposta, desapareceste durante três anos.

Esta rotina matou-me e os teus afastamentos apunhalaram-me já cadáver.

Já passou um ano desde a tua última aproximação, que recusei, e hoje não sei nada sobre ti. Também fugi. Mas nem a campaínha nem o telefone me contaram mais nada. E eu, cadavér, continuo aqui. Ninguém me leva para a morgue para me fazerem festinhas com o bisturi...

Enquanto espero ou te espero, vou dormir mais um sono de morte.


(Serei, pelo menos, a tua Bela Adormecida?)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O Casamento


O sono dela despertou em tons de roxo-funeral.

O sonho tinha-lhe oferecido, de bandeja, violentos seres em formato de perseguição.

O relógio da igreja ainda não tinha contado as 7h, já ela preparava o pequeno-almoço para ele: o mesmo de há 38 anos: sumo de laranja e torradas a verter manteiga. Arrumava o tabuleiro dele e contentava-se com um naco de papo sêco que a padeira acabava de deixar na maçaneta da porta.

Nisto, já eram horas das compras, sempre com as quantias conversadas e todas as contas bem feitinhas, desde dia anterior.

Durante todo o percurso ela não olhava nada nem ninguém de frente. Principalmente ninguém, segundo ele, todos os homens a desejavam e todas as mulheres a odiavam. A parte das mulheres ela acreditava porque a última mulher que tinha tentado um diálogo com ela, tinha-lhe dito, com toda a lata, que ele andava com uma qualquer da vila, o que era impossível visto que se tratava do "seu" marido.

Chegada a casa, lá preparava o almoço, muito devagarinho, para se poupar no gás.

Ele voltava do único trabalho digno que conhecia (sapateiro) e comia, igualmente devagarinho, para não se entalar e fazer bem a digestão, sempre com ela ao alto, não fosse o caso de precisar de algo.

Depois de ele regressar ao trabalho, ela comia bem rápido, sempre ansiando que ele não voltasse atrás, já que esta era a única altura em que ligava um bocadinho a TV, que só se acendia quando o benfica jogava, não fosse tal bocadinho subir a conta da luz que pagavam certinha, sem acertos, há 38 anos.

A tarde dela era dedicada aos arranjos de costura que as suas clientes traziam todas as semanas, umas senhoras ricas com quem ela nunca falava, não fossem elas abusar da confiança.

Seguia-se o jantar no mesmo tom do almoço sem a parte consolativa da TV.

Depois de arrumar a cozinha, era a vez do banho de imersão "da sexta-feira", único dia da semana com direito a banho completo seguido da habitual meia-hora de violação consentida de boca mais muda que tapada.

Ela não gostava das sextas-feiras.

O resto dos dias eram mais calmos, sem banho comprido nem desespero sofrido.

Apenas o silêncio, lado a lado, de um casamento bem conseguido.

domingo, 14 de dezembro de 2008

A Formiga E O Aquecedor


O corpo dela era um formigueiro com formigas famintas que se comiam umas às outras por falta de alimento.

O corpo dele era um aquecedor de alta potência com o termoestato caóticamente desregulado.

Os dois tentavam mas acabavam por evitar apagar a fome no formigueiro e a má regulação do aquecedor.

O medo dos possíveis arranjos desenhava-lhes o cérebro com medos e fobias inexplicáveis.

Depois de programarem metodicamente aguentarem o sofrimento por mais uns tempos, resolveram apagar de vez a fome e o calor descontrolados e, sem mais programações, mantiveram-se irremediavelmente e permanentemente agarrados.

domingo, 7 de dezembro de 2008

A Íris


A Íris era novinha. A Íris era novinha e muito sonhadora. A Íris deixou de sonhar quando descobriu que tinha uma doença terminal.

Havia pouco a ser feito mas era necessário iniciar rapidamente os tratamentos convencionais de combate ao cancro que a Íris recusou terminantemente.

Ela acreditava que era obrigada a seguir o seu destino e se ele queria ser curto, só tinha que lhe dar o braço a torcer.

Todos se revoltaram contra ela mas nada nem ninguém mudou o rumo da sua fatalidade.

A família arrasada e destroçada afastou-se e os amigos incompreendidos eram só dois, mas pelo mesmo motivo, já faziam frete nas esporádicas visitas.

Ela piorava a olhos vistos e não sonhou um único dia em ter a salvação no seu campo de visão.

Numa última tentativa dos pais, um médico-terapeuta foi lá casa.

Depois de muito conversarem e de não tocarem sequer no assunto minucioso, a Íris num tom bastante efusivo disse-lhe que aceitava ser tratada.

A roleta de tratamentos e viagens não parava de rodar, o cansaço e a má disposição tinham vindo para ficar mas a sua crença irrefectida desvaneceu e morreu.

Agarrou-se à vida como uma lapa sem deixar nunca que a tentassem afastar da rocha-mãe.

A Íris está agora curada e casada com o médico-terapeuta que conseguiu multiplicar o seu destino por muitos e muitos anos de felicidade.