quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pedras


Sorri para a professora que nem olha para ele.
Ao sair da sala tropeça na mochila do rei da turma e de cachaço dorido sai porta fora.
Passando o lancil, repara com desânimo que todos têm alguém à espera. Nem sempre é assim, há um ou outro familiar que se atrasa que é quando, dentro dele, até chega a existir um pequeno lugar de contentamento, apenas por esse outro alguém também sofrer por ter que esperar. Sente-se mais acompanhado mas preferia acompanhar-se de alguém que não era de ninguém. Como ele.
Segue chutando todas as pedras bonitas que encontra pelo caminho. Se alguma se perde, volta atrás para a buscar e pede-lhes desculpa por as arrastar.
Chega a casa do avô e guarda na lata de Coca-Cola as pedras que apanhou. Uma a uma, algumas a custo, outras folgadas lá se vão apertando umas nas outras enquanto se ouve proferir a lenga-lenga do costume: "obrigada por confiares, agora ninguém te vai magoar".
O avô, esse, está sempre no quarto. Tem uma senhora que cuida dele de dia e lhe traz as refeições da Santa Casa que o padre lá se conseguiu orientar.
Ele fica-se pelo almoço na cantina, em formato de senha isenta de pagamento e pelo pão com manteiga que a empregada do bar lhe costuma desviar.
A esta hora, que a fome aperta, é a melhor hora para se ir deitar.
Há mais de uma semana que ninguém lhes paga a botija do gás e ele chora minutos a fio antes de o sono o levar. Chora, tem vezes, horas só por estar a chorar e sem saber porque chora.
De manhã, espreita para dentro da lata, olha para as pedrinhas todas juntinhas e sussurra-lhes uma canção. Mas nunca é a mesma para não as cansar.
Pega na mochila e segue caminho sempre a olhar o chão na tentativa de encontrar mais uma pedrinha para entretanto cuidar.
E enquanto esperneia de dores na porrada dos intervalos, e enquanto é espezinhado pela professora dentro da sala, imagina estar dentro da latinha para que alguém, um dia, num qualquer lugar... também lhe possa sussurrar: "obrigada por confiares, agora ninguém te vai magoar".

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Banalidades


Amanhã vou filmar cada movimento teu.
Depois, durante a edição, vou filtrar cada olhar maroto para parecer seres mais crescido.
Vou camuflar todas as imperfeições para parecer teres pele de menino.
Vou esconder o jeito do teu caminhar para parecer andares direitinho.
Vou vestir-te com a roupa que gosto para te tornar apresentável.
Vou pentear-te à minha maneira e vais ficar impecável.
E só porque tudo o que eu tirarei me faz gostar de ti, vou guardar o filme dos restos e, às escondidas, rodá-lo só para mim.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Imagens


Aquela velhinha fica focada no fogo que dispara dos pés das imagens da igreja ao lado.
Sorri constantemente da ignorância dos pedestres que nunca se acreditam enganados.
Não chora por ninguém. Nunca chorou.
Dizem que na sua vida nunca houve um ponto final e que por isso é assim.
Pensa constantemente nas reticências que ficaram por completar e questiona-se se terá que voltar atrás.
Nunca voltou atrás. Dizem que teve uma infância traumática e que por isso é assim.
Ri constantemente das teorias em massa e observa, abismada, as pessoas fazendo promessas para o ar, olhando para o ar, procurando o ar, esperando pacientemente pela resposta.
Dizem que não é filha de Deus e que por isso é assim.
E é por ser assim que não se importa de ficar sempre sozinha, só com o contentamento de nunca acabar debaixo de nenhuma cruz nem velinha.

domingo, 2 de agosto de 2009

Get Away


Ela ouve um barulho estranho no alpendre, uma espécie de estalar de folhas secas mas é Verão e muda de opinião. Já não vai lá ver o que é. Já se habituou demais a estar enganada que acredita que tudo o que vive desaparece no momento a seguir. Como as pessoas.
Ela olha à volta e só as consegue ver mortas. Mortas, especadas em câmara ardente com famílias secas de lágrimas à volta. E os intrometidos a fazerem apostas sobre o preciso momento em que cairá a primeira lágrima. E nenhuma cai. E todos fazem o melhor ar de desaprovação porque gente que sente, chora.
E ela tira o som, a imagem e vai embora.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Comichão


Já quis que me odiasses quando no meu calendário emocional isso signicava que a palavra que muitos usam por aí, se podia manifestar.
Porque tu só gostas de brincar comigo. Tapo os olhos, conto até quinze devagarinho, parto à tua procura e quando chega a hora de apareceres, permaneces no teu esconderijo, qual flamingo rosado na hora de ser fotografado.
E eu faço força para te esquecer. Esquecer não por me fazeres isto mas porque nunca brincas a sério.
Assim como quando os meninos que são espezinhados ou calcados, só esperam um pedido de desculpas que cura dores que demoram semanas a passar.
Porque tu só gostas de brincar comigo aos espíritos, quando estou descansadinha quase a dormir, bates-me três vezes à porta e quando vou a abrir, desapareces. E fazes isso outra vez, e outra, noite atrás de noite.
E eu faço força para te esquecer.
Porque só gostas de brincar sem mim ao Milhafre-Preto, semelhante oportunista alimentar que varia a dieta conforme o lado para que está virado, alimentando-se de inúmeros pequenos animais sensíveis à sua ira que seduz e desencanta até matar.
E eu faço força para te esquecer. Esquecer não por me fazeres isto tudo mas porque nunca brincas a sério.
De tanta força que fiz, dei por mim a conseguir ser feliz.
E no outro dia, quando nos cruzámos, o impacto partiu o telhado. Apareceste do esconderijo e nunca mais lá voltaste, restringiste a dieta a greve de fome e tornaste-te real. Tudo isto metido dentro de um olhar.
E foi quando lá dentro, num sítio vermelho, saiu uma comichão de sentimento sem sangue e sem água misturado.
Uma comichão de sentimento verde-branco sem ser traçado, guardado sem prazo de validade, e bem selado.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Zebra


O trânsito estava interdito e o desvio já levava filas de rodas com passadas de metro a metro.
Tinha prometido a si própria não abrir a boca durante todo o caminho de regresso a casa. E tinha sido fácil até agora. Agora que avançavam passo a passo sobre os pneus da sua humilde viatura.
Ele vinha a cantar muito alto, quase aos berros e ia mudando sistematicamente a estação de rádio sem se calar nos espaços entre elas. Ele não conhecia as músicas e só sabia duas frases de inglês mas cantava intimidando os próprios cantores que se achavam melhor do que ele. Intimidando-a a ela, a triste, que se julgava mais inteligente do que ele.
E ela imaginava-se com outro ao seu lado. Outro que lhe cantasse canções calmas mas não melosas, outro que lhe segurasse devagarinho a mão sobre a manete das mudanças e que deixasse escorregar a mão para o seu colo enquando brincavam aos casais que discutem.
Imaginava que faziam uma viagem longa, que o carro era seguro e iriam comer, tomar banho e pernoitar t-o-d-o-s os dias fora.
Caiu desamparada lá de cima quando o carro humilde beijou zangado o cu do carro rico da frente. Horas e horas se seguiram durante o preenchimento da declaração pouco amigável. Ela preenchia uma e ele rasgava com um sorriso nos dentes a dizer que não ia entregar aquilo. Até que os fardados mandados vir por alguém de fora vieram rebocar o humilde carro que nem tinha esmola para ter as consultas em dia.
Quando estes os deixaram em casa, nem nojo do sitio mostraram, como todas as outras pessoas que lá passavam, mas seguiram apressadamente sem olharem um segundo que fosse para trás.
Ela nem teve tempo de quebrar a sua promessa, qual zebra manchada de encarnado aninhada no chão.
E ela imaginava-se com outro ao seu lado. Outro que lhe cantasse canções calmas e melosas, outro que lhe segurasse devagarinho a mão e que apenas não a deixasse pendurada no chão.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Folga - Te


Chego do trabalho que hoje lá fez valer o seu nome.
Deixo a água a correr e mais a correr ainda acabo de arrumar a roupa pincelada no chão.
O armário arrota agora de tão cheio e viro-me para a cama que implora que lhe puxe as orelhas.
Mergulho devagarinho o corpo na água quase morna que mesmo assim não impede que a cabeça entre em ebulição.
Revejo um ou três assuntos pendentes e saio a pingar porque me esqueci de trazer a toalha.
E ali estás tu atrás de mim. No reflexo onde apareces sempre comigo.
Às vezes parece que é mesmo verdade mas de todas as vezes que rodo rápido para te apanhar, a única coisa que vejo é o creme que já está à minha espera. E olha que tenho rodado cada vez mais rápido!
Bezunto-me com ele dos pés ao pescoço para voltar a sujar o que estava limpo.
Se aparecesses agora acho que ias gostar de me ver. Assim. Só com ele a cobrir.
Tantas passagens de creme que não te conheceram...
Enrolo-me com o remedeio da toalha de rosto para agora me poder espreguiçar na cama.
Cerro os olhos e os punhos e finalmente a cabeça branqueia.
Pronto, e já está escuro outra vez. 
Inspiro e expiro pelo nariz. Umbigo contra as costas quando expiro. Dez vezes mais duas vezes dez.
Tento meditar e fazer a regressão até ao dia do acidente. Chego à parte em que ainda respiras mas já não falas e...escuro outra vez. Um escuro bem pintado por cima de preto. 
Será que, ao menos, isso aí onde estás é transparente ou custa muito folgar um dia para vires fazer de mim crente?

terça-feira, 28 de abril de 2009

Last Movie


Estava deitada na cadeira do meu jardim quando me levaram para longe de casa.
Olhos adormecidos e cabeça fechada lá fui eu sem dar por nada.
Dizem que no caminho tossi muito e toda a gente se afastou.
E eu lembro-me de te ver, fazias-me mal. Muito mal. Estavas num divã e dominavas, sério de tanto prazer e delirado por eu estar a ver. E eu não respirava. Olhava de fora como se de um filme pornográfico se tratasse, completamente estarrecida com a certeza deste actor não estar a ser pago e ser muito mais bem servido.
Saíste de cima dela e vieste ao meu encontro. Gritei mais do que consegui fugir, chamei-te os nomes que me lembrei que detestavas e escrevi no guião o desaparecimento total da minha personagem.
Mais do que não te querer ver, sabia que jamais me poderias voltar a tocar. E não era por desconhecer que todos somos capazes de seguir vontades intrínsecas com seres extrínsecos. Era por me teres obrigado a assistir à tal união desconhecida de um ser tão meu conhecido.
Podia perfeitamente estar eu ali no teu lugar, satisfazendo-me com outro objecto humano mas nunca faria questão de to mostrar porque eu antecedo sempre cada pormenor teu. Mas tu, burro de todo o tamanho, nem pensaste no após e muito menos em nós.
E durante toda esta imagem eu não respirei.
Ouvi-te chorar ao longe como um pai que assiste ao parto do filho já morto, que julgava ver vivo.
Eu tinha morrido sem saber o motivo e ninguém conhecia este argumento que dentro de mim ecoava e que nunca tinha nem teria acontecido.
E tu estavas agora deitado no chão, onde dormiste comigo o primeiro sono da minha morte, pregado aos tacos com furos no coração.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Suplementos


Ela encavalitou-se nas costas dele e deixou arrastar o seu corpo inerte até chegarem a casa. Ele virou-a, abraçou-a prolongadamente e, mantendo-a nos braços, ela rodou a fechadura. Já ia quase de rastos quando ele a empurrou para o sofá. Nem se despiram. Foi ali e de imediato e não demoraram muitos segundos para que o acto tivesse terminado.
Como de todas as vezes, ela ficava a fitar o tecto, ali especada, apática, a olhar para nada, sem ouvir nada, sem fazer nada senão imaginar. Rebobinar o momento para que o pouco se transformasse em muito e fosse enfeitado com pormenores íntimos que só ela conhece.
Ele ia entreter-se com o seu mundo e ela não descolava do mundo faz-de-conta.
No dia seguinte encavalitou-se nas costas dele e deixou arrastar o seu corpo inerte até que se apercebeu que se tinha enganado nas costas. Este não era ele... Tentou sair de imediato destas tais embaraçosas mas o dono agarrou-a e levou-a até sua casa. Sentou-a no sofá e por detrás dela começou a acariciar-lhe os lóbulos das orelhas, o pescoço, as costas... descendo a uma velocidade tão lenta quanto estonteante no imaginário dela. Tudo se passou sem que ela tivesse reacção e passada uma hora tinha terminado a traição.
Voltou para casa sem episódios apáticos e toda ela emanava clareza e satisfação. Mal chegou, ele saltou para cima dela e ela escorregou e adormeceu.
No dia a seguir apenas procurava encontrar terminantemente as costas suplentes que lhe serviram tão bem. Encontrou apenas as de sempre e optou por acompanhá-las lado-a-lado. Optou por imaginar como seria se as tivesse encontrado e nesse dia, mais uma vez, escorregou e adormeceu.
Todos os restantes dias serviram apenas para a procura incessante das costas suplentes em cada recanto da cidade, como se lhe tivessem tirado um ser próximo e não um distante.
A vida em casa já não era a mesma e ele preparava-se para a deixar.
Passado quase um mês lá encontrou as costas distantes, por acaso e sem qualquer propósito. Parou, olhou estaticamente para elas e desatou a correr desalmadamente até casa.
Abraçou as costas próximas e ali ficaram horas a fio. No sofá que nunca mais foi trocado por nenhum sofá suplente. No sofá que os juntou, ininterruptamente e para sempre.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Corta A Cena!


Numa das noites em que gozávamos a penumbra magnífica dos nossos corpos, muitas vezes nem suados mas validos, numa altura em que estávamos parados à espera da próxima parada, num momento em que me agarraste a perna como se ela fosse fugir, num segundo em que eu nem pensava, numa fracção de segundo em que um raio te enraizou de fragilidade disseste, com calma, que me querias para sempre.
Eu, estática de corpo e prática de cabeça disse, sem calma nenhuma, para não repetires isso e, de modo a sublinhar a minha decisão, desenhei com maiúsculas um NUNCA MAIS no final da frase.

Ao contrário da minha vontade de me livrar de posteriores puxões e palavrões, ficaste ali, seguraste a minha perna como sempre fizeste e apenas deixei de te sentir.
Não estavas ali e eu também não.

Eu não te queria, tu sabias. Tu já não me querias, depois de proferida a minha fatídica frase, mas não saías dali e não descortinavas os porquês de não seguires com a tua vontade.

A tua raiva de virar a cama, de pontapear-me a cabeça, de cotovelar-me a boca para que eu nunca mais pudesse matar-te com frases descabidas, de cabecear-me a barriga até eu vomitar as tuas frases preferidas, de me torceres toda até me ajoelhar e pedir-te perdão, de me arrancares punhados de cabelo e de me mutilares a cara para mais ninguém conseguir olhar para mim, para mais ninguém me desejar, para mais ninguém se apaixonar, para mais ninguém me amar e, mais importante do que isso, mais ninguém poder ser retribuído nesse tão previsível amor.

Por fim adormecemos estafados de tantos pesadelos acordados e, ao despertar, abraçaste-me com a ternura de nunca porque durante o sono eu te tinha ensinado, de ponta a ponta, o abecedário do amor.

Agora só me quero lembrar das palavras mágicas para se cortar a cena e eu poder fugir deste filme de terror!
!!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

KamaSutra Divino


Ele é comerciante. Ela é costureira.
Ele é filho de um homem durão que comia a empregada onde os filhos comiam e a mulher limpava.
Que não se importava com olhos alheios porque afinal estava apaixonado por aquele buraquinho que ainda não tinha espelido filhos. Que afinal era com ela que queria casar. Que afinal espancava a esposa quando esta se emborcava depois de assistir pormenorizadamente a uma sessão de sexo desenfreado em que nunca participava.

Anos passaram, todos se cansaram e os dois amantes lá casaram.
Ele e os irmãos viram morrer a mãe de cirrose. Pequenos e sem dinheiro ficaram. Lá corriam na meta da vida, sozinhos e sem testemunhos para passar.

Ela é uma menina adoptada. Impingida numa adopção forçada à madrasta, conseguida através do prazer fétido do pai com uma qualquer prostituta.
Que afinal a esposa era atrofiada das trompas. Que afinal a esposa lá a foi criando com sopinhas de ciúmes mudos e papinhas enraivecidas em constante cicatrização.

Ela nunca quis conhecer o sangue da mãe barriga-de-aluguer e se pudesse fazia uma transfusão total de sangue da madrasta que, por sua vez, não dava o seu sangue por ela.
Ele nunca mais quis identificar o sangue do pai que milhentas vezes enchia a barriga da amante de abortos consecutivos.

Ele e ela conheceram-se numa idade bonita e na altura devida se casaram.
Deram o primeiro beijo na boca na noite de núpcias e sem travo a álcool.
Programaram o dia da concepção do rebento através das técnicas naturais e das contas da quarta classe, sem erros, tirando a provas dos nove quando ele nasceu precisamente no dia planeado, na data de casamento deles.
Sempre que se tentavam amar sem intenção de procriação, não se tocavam nem se rendiam ao prazer, seguindo sempre as páginas do Kamasutra Divino.

Pessoas que nunca falharam a nada nem a ninguém.
Pessoas que sempre viveram acorrentadas ao sangue que recusaram pertencer.
Pessoas que sempre viveram com o fardo da vergonha dos progenitores, que nunca a tiveram.
Pessoas que hoje dormem em quartos separados e já festejaram cinquenta anos de casados.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Post - Me


O dia em que a namorada-quase-a-sério foi lá casa foi o dia mais complicado da sua vida.
Ele, que nunca tinha exposto a sua segunda realidade a ninguém.
Na primeira, era um jovem-adulto completamente banal, interessava-se pelas mesmas coisas que os amigos e inimigos mas afirmava-se muito diferente deles, sem dar uma única mostra do contrário.
Extremamente sedutor e inteligente tinha as miúdas sempre de olho nele e ele sempre de olho nas notas que só se movimentavam numa escala bastante reduzida, do 19 ao 20.
Foi um universitário feliz até o dia em que a sua recente aquisição quis conhecer a sua casa, num dos todos fins-de-semana que os pais passavam fora.
Ela, quase tão inteligente quanto ele e, depois de rapidamente se aperceber que havia algo que não batia certo, esgueirou-se lá para casa com o pretexto de uma propositada aposta perdida, coberta em jantar caseiro com prazo-término no dia seguinte.
Estava ela quase a finalizar a preparação do jantar e nem sinal dele desde que chegaram.
Surrateira, foi dar com ele a escrever compulsivamente em post-its.
Curiosa da reacção, aproximou-se ainda mais e perguntou onde ele estava. Ele, depois do berro de susto, escondeu tudo e desculpou-se a dizer que estava a fazer a lista de compras.
Iniciado o serão, tudo correu ainda melhor do que o perspectivado.
No final da tórrida noite, ele fechou-se na casa de banho durante quase meia-hora.
Ela, em vez de o chamar, espreitou pela fechadura e deparou-se com ele a gatafunhar mais post-its com uma habilidade nunca vista e estando eles, agora, colados na parede numa ordenação linear.
Ela omitiu aquele episódio de cusquice mas ele suspeitou e antes que a suspeita se transformasse, deixou-a de vez.
Nem ela nem ninguém soube que ele não sabia quem eram as pessoas se não apontasse, religiosamente, cada passo da sua vida nos famosos post-its.
Que ele até se esquecia de esquecer porque a sua memória ia de escassa a nula e só existia porque ele se lembrava dos seus preciosos apontamentos.
Que ele lia qualquer letra e ordenação e as decorava até cerca de 72 horas, sendo por isso que tirava as suas tão invejadas notas.
Que as pessoas mais importantes estavam impressas num caderninho que ele tinha desde miúdo. E que a sua ex-quase-namorada-a-sério era a única mulher que constava nessa relíquia.
Sempre que olhava para o caderno, todo ele era coberto de tudo, menos bem-estar.
Pensou, então, que seria possível esquecer aquele tipo de dores se eliminasse os post-its referentes a momentos com ela e o nome dela do caderninho de miúdo.
O plano resultou excepcionalmente bem.
Até ao dia em que, sem querer, a encontrou.
Sempre que olhava para ela, todo ele era coberto de tudo, menos mal-estar.
E foi aí que, realmente, pensou que seria possível deixá-la... entrar nas suas duas realidades.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Ela e Eles


Ela só tinha um cigarro ou apenas o que restava dele.

Enquanto o tinha na mão, fitava-o demoradamente, saboreava cada puxão, sentia cada expiração como uma massagem profunda na mente e, de olhos fechados, focava-se no prazer imenso que ele, só a ela, lhe oferecia.

Assim que o terminava, atirava-o com desprezo para o chão, mesmo ao lado do muro do jardim que ela mais frequentava. O muro que já tinha as formas das suas nádegas. O chão que já tinha o molde dos seus pés. A imagem que já tinha cada pormenor por ela interiorizado. O único sítio em que ela mais esteve, sem se cansar e sem o deixar fora da sua vida.

Já olhando o chão, procurava com afinco e com manhosidade outras beatas que não as dela. As gémeas -falsas dos seus ex-cigarros.

Encontrava sempre uma ou duas. No lugar que pensava ser só dela. No lugar que, pelos vistos, outros também escolhiam para fumar os seus cigarros.

Não sabia com que periocidade os outros iam lá, mas também não os queria nem podia conhecer, com medo da sua atitude e dos seus pensamentos irreflectidos, filhos dos seus ciúmes inatos.

Ela, que só queria fumar cada cigarro, dia atrás de dia, como se eles fossem os únicos.

E eles, sem saberem a existência dos outros, que também eram só dela, e nem sequer a existência dos outros... dos outros.

Ela, a egocêntrica-mor, que só gostava da sensação de eles só a terem a ela e ela os ter a todos.

quarta-feira, 4 de março de 2009

O Menino - Gaivota


O menino queria ser uma gaivota.
Sem ter para onde ir ou para ir a todos os lados.
Sem ter que se preocupar com hábitos ou apenas criar e seguir os seus.
Sem ter que descer quando lhe mandam ou para subir quando lhe impedem.
Sem ter que se importar com alimentação ou para comer tudo o que os outros evitam.
Sem ter que se encontrar com semelhantes ou para encontrar os que, por acaso, fazem a mesma viagem.
Ele queria ser uma gaivota e esqueceu-se demais do quanto seria bom voltar a ser menino.

domingo, 1 de março de 2009

Cabeça de Fósforo


O corpo ofegante dela já não consegue acompanhar a velocidade estonteante da sua cabeça.

Menina pequenina com cabeça de fósforo.

Faíscas deixam-se arder em todas as rotundas e frentes dos hemisférios do seu imperfeito cérebro.

Isqueiros anómalos tentam acender o rastilho sempre em vão.

Neurónios reumáticos e semi-amputados tentam reaver desesperadamente pernas e braços de todo irrecuperáveis.

Mas, mesmo assim, a menina pequenina com cabeça de fósforo já está quase boa.

Porque cá fora existe um ser que afinal é um nó e que lhe serve mais do que 100 isqueiros que lhe possam aparecer.

E quando o nó dela e o nó dele se juntam, por muitas manobras e queimaduras que tencionem aplicar, não se podem jamais deslaçar.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Tanta Gente


As ondas a lamber a areia com alta tensão de tanto sal.
O sol a metralhar raios nas ondas que se atropelam umas às outras para chegarem primeiro à areia.
As rochas roídas de ciúmes das ondas não tocarem nelas e comerem a areia mesmo à sua frente.
As pombas a calcarem a areia com pezinhos de galinha e as ondas ainda mais ciumentas, cuspindo a sua raiva contra estas.
O muro da praia sem pesos humanos.
Tanta gente nos carros a olhar o mar sem conseguirem ver nada.
Tanta gente com tantos olhos iguais.
Tanta gente com a mesma cor de olhos, com o mesmo formato, do mesmo lugar, do mesmo mundo.
Tanta gente e não está aqui mais ninguém.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Cinzas


O meu pensamento não te quer deixar dormir.
Embrulha-te de admiração, resguarda-te dos lobos-maus e enclausura-te numa mágica pintura.

Não quero casar contigo.
Não quero casar contigo porque não te quero só a ti até que a morte nos separe.
Quero ficar aqui e que fiques aí.
Juntos apenas porque ninguém nos manda.
Juntos apenas por ficarmos bem assim.

O teu corpo, o meu corpo. Dois corpos que se procuram mas sem explicação.
A minha cabeça, a tua cabeça. Duas cabeças que se debatem mas sem exclusão.
Eu, tu. Dois que se mantêm dois e não se tornam um, como a mensagem cliché do amor tenta passar.
Não quero casar contigo.
Não quero casar contigo porque não te quero só a ti até que a morte nos separe.
Quando eu morrer, fico à tua espera.
Se morreres antes, espera por mim.

Para que as nossas cinzas se unam num dois em um que nem a vida nem o casamento nos podem dar.

Num dois em um que, por mais que tente, nem a morte nos separe.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A Traição Do Ouvido


O ouvido dele já teve melhores dias.
A cabeça ruidosa não o deixa filtrar os seus tão queridos barulhos.
Mas ele não era assim.
Ele distinguia as folhas a passearem no chão. Sabia de que árvore-mãe elas eram. Sabia que elas queriam conhecer outros sítios além do galho e outras folhas que não as suas vizinhas. Sabia que elas não sabiam que depois de se deixarem cair, já não podiam subir para a árvore-mãe nem arranjar mais nenhuma emprestada. Sabia que elas eram apanhadas para serem coladas ou esparramadas até ficarem lisinhas, junto das linhas, quadrados e letras de cadernos ou livros. Sabia que eram calcadas pelas vulgares pessoas ou atropeladas pelos velozes carros. Sabia até que eram varridas e que se transformavam numa mousse de asqueroso lixo.
Ele também percebia de carros.
Ele distinguia o velho carro do carro com poucos anos e do carro ainda mais recente. Sabia bem que os motores assobiavam com tons bem distintos. Sabia que uns arrotavam de malcriados, uns tossiam de doentes e outros cantavam de plena saúde. Sabia quando passava um a gás, de onde a onde, e sempre esperou que descobrissem um a água. Sabia até acertar em alguns modelos de acordo com o comportamento dos motores.
A sua única brincadeira, quando era novo, era exactamente gabar essa sua faceta nos intervalos, tendo os colegas a comprovarem-lhe a veracidade das suas pujantes tentativas adivinhatórias.
À noite era o seu íntimo que lhe dava a comprovação das suas adivinhas. Ele acreditava muito no seu interior, não estivesse o seu ouvido interno lá dentro também. Sabia que nem só as mulheres tinham intuições.
Ele não gostava de mulheres.
Sabia que elas falavam muito e muito mal nas costas. Sabia que elas eram tão falsas que elas próprias se acreditavam nas suas majestosas mentiras. Sabia que as lágrimas delas só deslizavam à superfície e que por pouco tempo choravam pelos mesmos motivos. Sabia até que elas não conheciam o que ele conhecia.
Ele não gostava assim muito de homens.
Sabia que eles não gostavam dele e eram gozões. Sabia que eles sempre pensaram que ele seria maricas. Sabia que eles lutavam pelas mesmas mulheres e se traíam uns aos outros por causa desse tão antigo pecado. Sabia até que eles, ainda menos do que elas, conheciam o que ele conhecia.
Isto porque ele vivia durante o dia e durante a noite, sem um único intervalo.
Vivia, portanto, o dobro das pessoas e até quase o dobro de alguns animais mais dorminhocos que ele bem conhecia.
Ele aprendia mais de noite em casa a escutar do que de dia na escola a estudar.
Ele distinguia o tamanho das gotas da chuva que disparavam em queda-livre contra o chão do seu quintal. Sabia até os segundos da frequência das suas aterragens.
Agora ouve mal, está velho e não tem companhia.
Ele, que até distinguia todos os passos das pessoas que conhecia, agora mal consegue ouvir a campaínha.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Concurso


Quando era pequenina tinha ganho um concurso.
Não daqueles concursos de televisão nem passatempos de casa infantis, ganhou um que ultrapassava todos esses e lhe deu o melhor prémio possível. Não Nintendos nem Castelos de Barbies.
O concurso parecia simples.
Encostada a uma cama de hospital com Febre Aftosa em estado avançado, sem defesas e à porta da morte, tinha que aguentar não chorar para ganhar aos outros meninos na mesma situação.
Esteve 21 dias internada e ganhou a todos que entravam, que saiam e que morriam.
No final a equipa que a tratou perguntou-lhe como tinha conseguido, além do milagre da vida, o carrego da dor.
Ela, tímida, sorriu e perguntou o que tinha ganho. Ao que o médico, ditador do concurso, lhe respondeu: "Ganhaste a vida".
Ela, imediatamente, entrou em pranto, sem perceber porque o médico a tinha enganado. Tanto esforço...para nada.
"O que é a vida? Eu não posso brincar com a vida nem às vidas... Quero um brinquedo!".
Por mais que lhe tentassem explicar, só mais pranto lhe conseguiam arrancar.
Depois de deixar o hospital, quando as empregadas foram fazer as camas de lavado, deram com o colchão todo desfeito, por baixo do lençol intacto que camuflou o sofrimento mudo e em vão daquela estranha criança.
A partir desse dia, a criança chorava todas as noites, gritava, esperneava, batia nela própria e sofria de ataques de ansiedade constantes. Um deles foi tão forte que foi parar novamente ao hospital porque tinha sofrido uma queda bastante aparatosa.
O médico que a atendeu foi o mesmo que a tratou e ela, sem que ninguém prevesse, desatou aos murros e pontapés contra o pobre médico com toda a raiva que a movia.
Levaram-na para a ala psiquiátrica infantil. Lá permaneceu 5 meses. Ao final desses meses, sem qualquer tipo de melhoras, deram-lhe alta, receitando-lhe, no entanto, umas consultas de apoio psicológico semanais, até perfazer mais meia dúzia de meses.
O psicólogo que lhe dava as consultas domiciliárias, resolveu voltar a juntá-la ao médico para perceber a sua reacção e se tinha havido melhoras.
Ela, estática, fingiu que ele não estava lá, mesmo quando ele pegou na cabeça dela à força, obrigando-a a olhar nos olhos. Ela apenas os revirou, qual monstro em estado embrionário.
O médico mandou bom-bons pelo psicólogo. Ela deitou-os ao chão e calcou-os um a um. Com muita calma, já curada da raiva.
Os psicólogos rodavam em frustração, alguns até recusaram imediatamente o caso dela que se constava maligno em todo o hospital.
A menina entrou na escola mas não aprendia nada e ficou 3 anos retida. Esteve até um ano inteiro com uma professora de ensino especial e não mostrava ponta de motivação e desenvolvimento.
Desistiram da miúda que tinha há muito desistido dela própria.
Quando se tornou mulherzinha, interessou-se por um dos milhentos psicológos que a aturavam e partiu logo para a acção. O coitado, estagiário, já assustado com aquele horrível quadro, empurrou-a com a sua força de leão. Ela cai desamparada no chão, bate com a fonte numa esquina da mesa da sala, abre-a e de volta ao hospital. De volta ao mesmo médico que a atende.
Ela parecia bem mas passou uma noite em observações. Observada pelo médico que já tinha a hora de saída expirada e continuava lá ao alto. Quando acordou, de manhãzinha, olhou nos olhos dele e ele pediu-lhe desculpa.
Ela saiu daquele hospital aparentemente curada.
Estudou afincadamente o ensino básico e secundário, ganhou menções honrosas e acabou por escolher o curso de enfermagem. Entrou naquele hospital, na ala pediátrica.
Quando reparava em algum caso parecido com o seu, contava a sua história e conseguia que as crianças tivessem a força que ela teve, sem esperarem nada em troca.
Era a enfermeira que todos os meninos queriam ao lado na dor e ela já os anestesiava de cor.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

MalMeQuer


Anteontem ele recolheu um Malmequer.
Desflorou-o com as palavras "Bem-me-quer ou Mal-me-quer" mas não decorou a última palavra dessa lengalenga.
Voltou ao sítio deles e recolheu outro Malmequer mas, sem se aperceber, colheu dois de uma tirada, um caiu, o outro esqueceu-se de o desflorar porque estava atrasado.
Foi a correr para o jardim junto à Escola e esperou que a sua vizinha mais-que-isso saísse.
Mal a avistou, ergueu sem querer o Malmequer e ela veio de imediato ao seu encontro. Parou junto dele e corou quando olhou para o Malmequer que ele trazia na mão. Ele, tímido, estendeu-o e ela agarrou nele com muita precisão. Despedaçou-o e a lengalenga acabou em Mal-me-quer. Rapidamente atirou o restante talo para o chão e calcou-o com o que parecia um misto de raiva e desilusão. Até assim ela era bonita.
Foram juntos a caminho da eira da avó dela, onde era costume trocarem uns beijinhos mesmo juntinho-aos-lábios.
Ao contrário do que ele esperava, ela não lhe tocou na mão todo o caminho e quando chegaram ao local, entretanto só deles, ela não pronunciou nem um grunhido e fintou extremamente bem e com poucas manobras a sua tentativa de beijinho juntinho-aos-lábios.
Quando começou a escurecer foram para casa sem se olharem e quase sem pestanejarem.
Ele passou toda essa noite acordado fazendo um, dois, três e mais alguns retrocessos em câmara-lenta da recusa que teve, difícil de se contentar e superar.
Depois de mais uns tantos retrocessos sem progressos, achou por bem confrontá-la mal ela saísse da Escola para poder, então, servir-se de, pelo menos, uma explicação.
Depois de nada fazer durante todo o dia, esperou, escondido numa das árvores de tronco grosso do lado de fora da Escola, mais de três horas, o toque de saída. O seu coração já parecia milho-quase-em-pipoca dentro do tacho no impasse da espera e na ânsia do reencontro.
Lá estava ela. Ou parecia ela.
Vestido até aos joelhos salmão com pequenas florzinhas.
Não podia ser ela. Mas parecia ela.
Meias pérola mesmo por baixo dos joelhos e sapatos a imitar as bailarinas, rosa-claros.
Parecia mesmo ela.
Na cabeça uma bandolete pérola com um lacinho de lado, rosa-claro. Toda a combinar.
Só podia ser ela. Ele não queria que fosse mesmo ela.
Vinha tão bonita, risonha, sem jeito, tresloucada... Era ela!
Mas...de mão dada com outro tipo.
Um tipo que estudava... Devia ser melhor do que ele e era, sem dúvida, mais bem aparentado.
Depois de um ano em quase-depressão e depois de árdua e sofrida investigação, descobriu que a relação-maravilha e, até então, estável tinha tido origem num desflorar "Bem-me-quer" de um qualquer, perdido no chão, Malmequer.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Mas Não Páres!


Num ápice o meu corpo estremeceu.
Depois de provado, senti que foi uma mistura de frio, arrepio, calor e dor.
E prazer. Esse, em proporção, ganhou. Sem dúvida.
Estou agora a experimentar outra sensação... Espera... Daquelas em que o som que está fora do nosso corpo se torna tão insignificante que desaparece por causa do turbilhão de emoções lá dentro e só lá dentro arremessadas sem ordenação.
Não me consigo concentrar. Espera...Falaste?
Não fales, continua que hoje estou a gostar de espectar.
Aliás, sei que falas mas já não te ouço....Espera...Assim tenho cócegas. Na barriga não, nas pernas não, nos ombros não...Pára!
Já podes continuar. Lábios...Isso são lábios? São molhados, são ásperos, são secos, são macios...Mas não páres!
Que cheiro é este? Cheira a maresia, a pôr-do-sol, a cortiça...O que é?
Ainda bem que não falaste...Estou a desconcentrar-me...
Gosto quando gemes...só te ouço a ti...e cá dentro e...hoje fica aqui!
Dorme cá, pode ser? Mas não páres!
Já estou a confundir tudo, as sensações, as cores, os cheiros, os sons...Gosto quando gemes...só te ouço a ti...e cá dentro...o que é isto?????
Ok, pára...agora está sensível...
Abraça-me para perceber se é real, se estou ou não invisível... Não sinto as pernas, não sinto a barriga e os pés e as coxas...

sábado, 3 de janeiro de 2009

Domingos


O cigarro sempre ligado no mínimo deitado sobre o cinzeiro de cobre.

A secretária a arrotar papéis gatafunhados e a vomitar livros em lista de espera.

Um cheiro a pó com tabaco rasca cobre a casa que só dá guarida ao Domingos.

Irónico ter o nome do dia da semana, para ele, mais detestável.

Além desta casa, estava igualmente na casa dos quarenta, casa a abarrotar de gente que ele não conhece nem tenciona conhecer.

Bem parecido mas propositadamente mal arranjado, só sai de casa para comprar jornal, tabaco e para os necessários almoços e jantares no restaurante do seu condomínio.

Filho de um pai abastado, Domingos nunca precisou nem quis trabalhar e sempre se revoltou com as injecções culturais a que os pais o obrigaram desde cedo. Preferia as vacinas.

Pai escritor e mãe pintora, compareciam a tudo o que era evento cultural com o rebento atrás. Este, de seguida, ainda a mal saber escrever, tinha que entregar na semana seguinte um relatório critorioso e bem elaborado da visita, com direito a classificação rígida após atenta correcção de ambos os pais.

Aguenta até aos vinte e um em casa destes dois e quase a fazer vinte e dois, foge para longe do mundo cultural.
Inicia uma vida nova com amigos novos, televisão a cores e cinema de filmes comerciais. Nem um ano tinha passado quando percebeu que não conseguia manter amizades devido ou aos seus silêncios prolongados ou às suas conversas demais complexas.

Seguiram-se os cigarros, jornais e refeições que serviam de intervalo à leitura desenfreada e posterior escrita empenhada.

Hoje está no sofá. Ao lado, uma linda menina acompanhante de luxo que o acompanha, pela primeira vez, desde o ano em que tentou ser como os outros. O único ano da sua vida em que não esteve em abstenção.

Hoje está no sofá. Ela despe-se, ele retrai-se. Ela ri, ele chora. Ela tenta banalizar o sucedido com falinhas pouco estudadas, ele paga e acompanha-a à porta.

Irónico ter sido acompanhante de uma acompanhante de luxo.

Sentado no sofá decide, então, morrer como sabe viver.

Mas só acaba por falecer aos oitenta e um anos, vítima de um AVC. Embora conhecesse de cor todos os sintomas, foi exactamente por isso que se sentiu feliz pela primeira vez na vida e, se quis deixar morrer.

Irónico o AVC do Domingos ter sido Aversão à Vida Completa. Mas só as iniciais constaram na certidão de óbito do homem que, sem nunca o básico ter aprendido, só soube ler e escrever.