quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Tanta Gente


As ondas a lamber a areia com alta tensão de tanto sal.
O sol a metralhar raios nas ondas que se atropelam umas às outras para chegarem primeiro à areia.
As rochas roídas de ciúmes das ondas não tocarem nelas e comerem a areia mesmo à sua frente.
As pombas a calcarem a areia com pezinhos de galinha e as ondas ainda mais ciumentas, cuspindo a sua raiva contra estas.
O muro da praia sem pesos humanos.
Tanta gente nos carros a olhar o mar sem conseguirem ver nada.
Tanta gente com tantos olhos iguais.
Tanta gente com a mesma cor de olhos, com o mesmo formato, do mesmo lugar, do mesmo mundo.
Tanta gente e não está aqui mais ninguém.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Cinzas


O meu pensamento não te quer deixar dormir.
Embrulha-te de admiração, resguarda-te dos lobos-maus e enclausura-te numa mágica pintura.

Não quero casar contigo.
Não quero casar contigo porque não te quero só a ti até que a morte nos separe.
Quero ficar aqui e que fiques aí.
Juntos apenas porque ninguém nos manda.
Juntos apenas por ficarmos bem assim.

O teu corpo, o meu corpo. Dois corpos que se procuram mas sem explicação.
A minha cabeça, a tua cabeça. Duas cabeças que se debatem mas sem exclusão.
Eu, tu. Dois que se mantêm dois e não se tornam um, como a mensagem cliché do amor tenta passar.
Não quero casar contigo.
Não quero casar contigo porque não te quero só a ti até que a morte nos separe.
Quando eu morrer, fico à tua espera.
Se morreres antes, espera por mim.

Para que as nossas cinzas se unam num dois em um que nem a vida nem o casamento nos podem dar.

Num dois em um que, por mais que tente, nem a morte nos separe.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A Traição Do Ouvido


O ouvido dele já teve melhores dias.
A cabeça ruidosa não o deixa filtrar os seus tão queridos barulhos.
Mas ele não era assim.
Ele distinguia as folhas a passearem no chão. Sabia de que árvore-mãe elas eram. Sabia que elas queriam conhecer outros sítios além do galho e outras folhas que não as suas vizinhas. Sabia que elas não sabiam que depois de se deixarem cair, já não podiam subir para a árvore-mãe nem arranjar mais nenhuma emprestada. Sabia que elas eram apanhadas para serem coladas ou esparramadas até ficarem lisinhas, junto das linhas, quadrados e letras de cadernos ou livros. Sabia que eram calcadas pelas vulgares pessoas ou atropeladas pelos velozes carros. Sabia até que eram varridas e que se transformavam numa mousse de asqueroso lixo.
Ele também percebia de carros.
Ele distinguia o velho carro do carro com poucos anos e do carro ainda mais recente. Sabia bem que os motores assobiavam com tons bem distintos. Sabia que uns arrotavam de malcriados, uns tossiam de doentes e outros cantavam de plena saúde. Sabia quando passava um a gás, de onde a onde, e sempre esperou que descobrissem um a água. Sabia até acertar em alguns modelos de acordo com o comportamento dos motores.
A sua única brincadeira, quando era novo, era exactamente gabar essa sua faceta nos intervalos, tendo os colegas a comprovarem-lhe a veracidade das suas pujantes tentativas adivinhatórias.
À noite era o seu íntimo que lhe dava a comprovação das suas adivinhas. Ele acreditava muito no seu interior, não estivesse o seu ouvido interno lá dentro também. Sabia que nem só as mulheres tinham intuições.
Ele não gostava de mulheres.
Sabia que elas falavam muito e muito mal nas costas. Sabia que elas eram tão falsas que elas próprias se acreditavam nas suas majestosas mentiras. Sabia que as lágrimas delas só deslizavam à superfície e que por pouco tempo choravam pelos mesmos motivos. Sabia até que elas não conheciam o que ele conhecia.
Ele não gostava assim muito de homens.
Sabia que eles não gostavam dele e eram gozões. Sabia que eles sempre pensaram que ele seria maricas. Sabia que eles lutavam pelas mesmas mulheres e se traíam uns aos outros por causa desse tão antigo pecado. Sabia até que eles, ainda menos do que elas, conheciam o que ele conhecia.
Isto porque ele vivia durante o dia e durante a noite, sem um único intervalo.
Vivia, portanto, o dobro das pessoas e até quase o dobro de alguns animais mais dorminhocos que ele bem conhecia.
Ele aprendia mais de noite em casa a escutar do que de dia na escola a estudar.
Ele distinguia o tamanho das gotas da chuva que disparavam em queda-livre contra o chão do seu quintal. Sabia até os segundos da frequência das suas aterragens.
Agora ouve mal, está velho e não tem companhia.
Ele, que até distinguia todos os passos das pessoas que conhecia, agora mal consegue ouvir a campaínha.