segunda-feira, 23 de março de 2009

Post - Me


O dia em que a namorada-quase-a-sério foi lá casa foi o dia mais complicado da sua vida.
Ele, que nunca tinha exposto a sua segunda realidade a ninguém.
Na primeira, era um jovem-adulto completamente banal, interessava-se pelas mesmas coisas que os amigos e inimigos mas afirmava-se muito diferente deles, sem dar uma única mostra do contrário.
Extremamente sedutor e inteligente tinha as miúdas sempre de olho nele e ele sempre de olho nas notas que só se movimentavam numa escala bastante reduzida, do 19 ao 20.
Foi um universitário feliz até o dia em que a sua recente aquisição quis conhecer a sua casa, num dos todos fins-de-semana que os pais passavam fora.
Ela, quase tão inteligente quanto ele e, depois de rapidamente se aperceber que havia algo que não batia certo, esgueirou-se lá para casa com o pretexto de uma propositada aposta perdida, coberta em jantar caseiro com prazo-término no dia seguinte.
Estava ela quase a finalizar a preparação do jantar e nem sinal dele desde que chegaram.
Surrateira, foi dar com ele a escrever compulsivamente em post-its.
Curiosa da reacção, aproximou-se ainda mais e perguntou onde ele estava. Ele, depois do berro de susto, escondeu tudo e desculpou-se a dizer que estava a fazer a lista de compras.
Iniciado o serão, tudo correu ainda melhor do que o perspectivado.
No final da tórrida noite, ele fechou-se na casa de banho durante quase meia-hora.
Ela, em vez de o chamar, espreitou pela fechadura e deparou-se com ele a gatafunhar mais post-its com uma habilidade nunca vista e estando eles, agora, colados na parede numa ordenação linear.
Ela omitiu aquele episódio de cusquice mas ele suspeitou e antes que a suspeita se transformasse, deixou-a de vez.
Nem ela nem ninguém soube que ele não sabia quem eram as pessoas se não apontasse, religiosamente, cada passo da sua vida nos famosos post-its.
Que ele até se esquecia de esquecer porque a sua memória ia de escassa a nula e só existia porque ele se lembrava dos seus preciosos apontamentos.
Que ele lia qualquer letra e ordenação e as decorava até cerca de 72 horas, sendo por isso que tirava as suas tão invejadas notas.
Que as pessoas mais importantes estavam impressas num caderninho que ele tinha desde miúdo. E que a sua ex-quase-namorada-a-sério era a única mulher que constava nessa relíquia.
Sempre que olhava para o caderno, todo ele era coberto de tudo, menos bem-estar.
Pensou, então, que seria possível esquecer aquele tipo de dores se eliminasse os post-its referentes a momentos com ela e o nome dela do caderninho de miúdo.
O plano resultou excepcionalmente bem.
Até ao dia em que, sem querer, a encontrou.
Sempre que olhava para ela, todo ele era coberto de tudo, menos mal-estar.
E foi aí que, realmente, pensou que seria possível deixá-la... entrar nas suas duas realidades.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Ela e Eles


Ela só tinha um cigarro ou apenas o que restava dele.

Enquanto o tinha na mão, fitava-o demoradamente, saboreava cada puxão, sentia cada expiração como uma massagem profunda na mente e, de olhos fechados, focava-se no prazer imenso que ele, só a ela, lhe oferecia.

Assim que o terminava, atirava-o com desprezo para o chão, mesmo ao lado do muro do jardim que ela mais frequentava. O muro que já tinha as formas das suas nádegas. O chão que já tinha o molde dos seus pés. A imagem que já tinha cada pormenor por ela interiorizado. O único sítio em que ela mais esteve, sem se cansar e sem o deixar fora da sua vida.

Já olhando o chão, procurava com afinco e com manhosidade outras beatas que não as dela. As gémeas -falsas dos seus ex-cigarros.

Encontrava sempre uma ou duas. No lugar que pensava ser só dela. No lugar que, pelos vistos, outros também escolhiam para fumar os seus cigarros.

Não sabia com que periocidade os outros iam lá, mas também não os queria nem podia conhecer, com medo da sua atitude e dos seus pensamentos irreflectidos, filhos dos seus ciúmes inatos.

Ela, que só queria fumar cada cigarro, dia atrás de dia, como se eles fossem os únicos.

E eles, sem saberem a existência dos outros, que também eram só dela, e nem sequer a existência dos outros... dos outros.

Ela, a egocêntrica-mor, que só gostava da sensação de eles só a terem a ela e ela os ter a todos.

quarta-feira, 4 de março de 2009

O Menino - Gaivota


O menino queria ser uma gaivota.
Sem ter para onde ir ou para ir a todos os lados.
Sem ter que se preocupar com hábitos ou apenas criar e seguir os seus.
Sem ter que descer quando lhe mandam ou para subir quando lhe impedem.
Sem ter que se importar com alimentação ou para comer tudo o que os outros evitam.
Sem ter que se encontrar com semelhantes ou para encontrar os que, por acaso, fazem a mesma viagem.
Ele queria ser uma gaivota e esqueceu-se demais do quanto seria bom voltar a ser menino.

domingo, 1 de março de 2009

Cabeça de Fósforo


O corpo ofegante dela já não consegue acompanhar a velocidade estonteante da sua cabeça.

Menina pequenina com cabeça de fósforo.

Faíscas deixam-se arder em todas as rotundas e frentes dos hemisférios do seu imperfeito cérebro.

Isqueiros anómalos tentam acender o rastilho sempre em vão.

Neurónios reumáticos e semi-amputados tentam reaver desesperadamente pernas e braços de todo irrecuperáveis.

Mas, mesmo assim, a menina pequenina com cabeça de fósforo já está quase boa.

Porque cá fora existe um ser que afinal é um nó e que lhe serve mais do que 100 isqueiros que lhe possam aparecer.

E quando o nó dela e o nó dele se juntam, por muitas manobras e queimaduras que tencionem aplicar, não se podem jamais deslaçar.