terça-feira, 26 de maio de 2009

Zebra


O trânsito estava interdito e o desvio já levava filas de rodas com passadas de metro a metro.
Tinha prometido a si própria não abrir a boca durante todo o caminho de regresso a casa. E tinha sido fácil até agora. Agora que avançavam passo a passo sobre os pneus da sua humilde viatura.
Ele vinha a cantar muito alto, quase aos berros e ia mudando sistematicamente a estação de rádio sem se calar nos espaços entre elas. Ele não conhecia as músicas e só sabia duas frases de inglês mas cantava intimidando os próprios cantores que se achavam melhor do que ele. Intimidando-a a ela, a triste, que se julgava mais inteligente do que ele.
E ela imaginava-se com outro ao seu lado. Outro que lhe cantasse canções calmas mas não melosas, outro que lhe segurasse devagarinho a mão sobre a manete das mudanças e que deixasse escorregar a mão para o seu colo enquando brincavam aos casais que discutem.
Imaginava que faziam uma viagem longa, que o carro era seguro e iriam comer, tomar banho e pernoitar t-o-d-o-s os dias fora.
Caiu desamparada lá de cima quando o carro humilde beijou zangado o cu do carro rico da frente. Horas e horas se seguiram durante o preenchimento da declaração pouco amigável. Ela preenchia uma e ele rasgava com um sorriso nos dentes a dizer que não ia entregar aquilo. Até que os fardados mandados vir por alguém de fora vieram rebocar o humilde carro que nem tinha esmola para ter as consultas em dia.
Quando estes os deixaram em casa, nem nojo do sitio mostraram, como todas as outras pessoas que lá passavam, mas seguiram apressadamente sem olharem um segundo que fosse para trás.
Ela nem teve tempo de quebrar a sua promessa, qual zebra manchada de encarnado aninhada no chão.
E ela imaginava-se com outro ao seu lado. Outro que lhe cantasse canções calmas e melosas, outro que lhe segurasse devagarinho a mão e que apenas não a deixasse pendurada no chão.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Folga - Te


Chego do trabalho que hoje lá fez valer o seu nome.
Deixo a água a correr e mais a correr ainda acabo de arrumar a roupa pincelada no chão.
O armário arrota agora de tão cheio e viro-me para a cama que implora que lhe puxe as orelhas.
Mergulho devagarinho o corpo na água quase morna que mesmo assim não impede que a cabeça entre em ebulição.
Revejo um ou três assuntos pendentes e saio a pingar porque me esqueci de trazer a toalha.
E ali estás tu atrás de mim. No reflexo onde apareces sempre comigo.
Às vezes parece que é mesmo verdade mas de todas as vezes que rodo rápido para te apanhar, a única coisa que vejo é o creme que já está à minha espera. E olha que tenho rodado cada vez mais rápido!
Bezunto-me com ele dos pés ao pescoço para voltar a sujar o que estava limpo.
Se aparecesses agora acho que ias gostar de me ver. Assim. Só com ele a cobrir.
Tantas passagens de creme que não te conheceram...
Enrolo-me com o remedeio da toalha de rosto para agora me poder espreguiçar na cama.
Cerro os olhos e os punhos e finalmente a cabeça branqueia.
Pronto, e já está escuro outra vez. 
Inspiro e expiro pelo nariz. Umbigo contra as costas quando expiro. Dez vezes mais duas vezes dez.
Tento meditar e fazer a regressão até ao dia do acidente. Chego à parte em que ainda respiras mas já não falas e...escuro outra vez. Um escuro bem pintado por cima de preto. 
Será que, ao menos, isso aí onde estás é transparente ou custa muito folgar um dia para vires fazer de mim crente?