terça-feira, 28 de abril de 2009

Last Movie


Estava deitada na cadeira do meu jardim quando me levaram para longe de casa.
Olhos adormecidos e cabeça fechada lá fui eu sem dar por nada.
Dizem que no caminho tossi muito e toda a gente se afastou.
E eu lembro-me de te ver, fazias-me mal. Muito mal. Estavas num divã e dominavas, sério de tanto prazer e delirado por eu estar a ver. E eu não respirava. Olhava de fora como se de um filme pornográfico se tratasse, completamente estarrecida com a certeza deste actor não estar a ser pago e ser muito mais bem servido.
Saíste de cima dela e vieste ao meu encontro. Gritei mais do que consegui fugir, chamei-te os nomes que me lembrei que detestavas e escrevi no guião o desaparecimento total da minha personagem.
Mais do que não te querer ver, sabia que jamais me poderias voltar a tocar. E não era por desconhecer que todos somos capazes de seguir vontades intrínsecas com seres extrínsecos. Era por me teres obrigado a assistir à tal união desconhecida de um ser tão meu conhecido.
Podia perfeitamente estar eu ali no teu lugar, satisfazendo-me com outro objecto humano mas nunca faria questão de to mostrar porque eu antecedo sempre cada pormenor teu. Mas tu, burro de todo o tamanho, nem pensaste no após e muito menos em nós.
E durante toda esta imagem eu não respirei.
Ouvi-te chorar ao longe como um pai que assiste ao parto do filho já morto, que julgava ver vivo.
Eu tinha morrido sem saber o motivo e ninguém conhecia este argumento que dentro de mim ecoava e que nunca tinha nem teria acontecido.
E tu estavas agora deitado no chão, onde dormiste comigo o primeiro sono da minha morte, pregado aos tacos com furos no coração.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Suplementos


Ela encavalitou-se nas costas dele e deixou arrastar o seu corpo inerte até chegarem a casa. Ele virou-a, abraçou-a prolongadamente e, mantendo-a nos braços, ela rodou a fechadura. Já ia quase de rastos quando ele a empurrou para o sofá. Nem se despiram. Foi ali e de imediato e não demoraram muitos segundos para que o acto tivesse terminado.
Como de todas as vezes, ela ficava a fitar o tecto, ali especada, apática, a olhar para nada, sem ouvir nada, sem fazer nada senão imaginar. Rebobinar o momento para que o pouco se transformasse em muito e fosse enfeitado com pormenores íntimos que só ela conhece.
Ele ia entreter-se com o seu mundo e ela não descolava do mundo faz-de-conta.
No dia seguinte encavalitou-se nas costas dele e deixou arrastar o seu corpo inerte até que se apercebeu que se tinha enganado nas costas. Este não era ele... Tentou sair de imediato destas tais embaraçosas mas o dono agarrou-a e levou-a até sua casa. Sentou-a no sofá e por detrás dela começou a acariciar-lhe os lóbulos das orelhas, o pescoço, as costas... descendo a uma velocidade tão lenta quanto estonteante no imaginário dela. Tudo se passou sem que ela tivesse reacção e passada uma hora tinha terminado a traição.
Voltou para casa sem episódios apáticos e toda ela emanava clareza e satisfação. Mal chegou, ele saltou para cima dela e ela escorregou e adormeceu.
No dia a seguir apenas procurava encontrar terminantemente as costas suplentes que lhe serviram tão bem. Encontrou apenas as de sempre e optou por acompanhá-las lado-a-lado. Optou por imaginar como seria se as tivesse encontrado e nesse dia, mais uma vez, escorregou e adormeceu.
Todos os restantes dias serviram apenas para a procura incessante das costas suplentes em cada recanto da cidade, como se lhe tivessem tirado um ser próximo e não um distante.
A vida em casa já não era a mesma e ele preparava-se para a deixar.
Passado quase um mês lá encontrou as costas distantes, por acaso e sem qualquer propósito. Parou, olhou estaticamente para elas e desatou a correr desalmadamente até casa.
Abraçou as costas próximas e ali ficaram horas a fio. No sofá que nunca mais foi trocado por nenhum sofá suplente. No sofá que os juntou, ininterruptamente e para sempre.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Corta A Cena!


Numa das noites em que gozávamos a penumbra magnífica dos nossos corpos, muitas vezes nem suados mas validos, numa altura em que estávamos parados à espera da próxima parada, num momento em que me agarraste a perna como se ela fosse fugir, num segundo em que eu nem pensava, numa fracção de segundo em que um raio te enraizou de fragilidade disseste, com calma, que me querias para sempre.
Eu, estática de corpo e prática de cabeça disse, sem calma nenhuma, para não repetires isso e, de modo a sublinhar a minha decisão, desenhei com maiúsculas um NUNCA MAIS no final da frase.

Ao contrário da minha vontade de me livrar de posteriores puxões e palavrões, ficaste ali, seguraste a minha perna como sempre fizeste e apenas deixei de te sentir.
Não estavas ali e eu também não.

Eu não te queria, tu sabias. Tu já não me querias, depois de proferida a minha fatídica frase, mas não saías dali e não descortinavas os porquês de não seguires com a tua vontade.

A tua raiva de virar a cama, de pontapear-me a cabeça, de cotovelar-me a boca para que eu nunca mais pudesse matar-te com frases descabidas, de cabecear-me a barriga até eu vomitar as tuas frases preferidas, de me torceres toda até me ajoelhar e pedir-te perdão, de me arrancares punhados de cabelo e de me mutilares a cara para mais ninguém conseguir olhar para mim, para mais ninguém me desejar, para mais ninguém se apaixonar, para mais ninguém me amar e, mais importante do que isso, mais ninguém poder ser retribuído nesse tão previsível amor.

Por fim adormecemos estafados de tantos pesadelos acordados e, ao despertar, abraçaste-me com a ternura de nunca porque durante o sono eu te tinha ensinado, de ponta a ponta, o abecedário do amor.

Agora só me quero lembrar das palavras mágicas para se cortar a cena e eu poder fugir deste filme de terror!
!!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

KamaSutra Divino


Ele é comerciante. Ela é costureira.
Ele é filho de um homem durão que comia a empregada onde os filhos comiam e a mulher limpava.
Que não se importava com olhos alheios porque afinal estava apaixonado por aquele buraquinho que ainda não tinha espelido filhos. Que afinal era com ela que queria casar. Que afinal espancava a esposa quando esta se emborcava depois de assistir pormenorizadamente a uma sessão de sexo desenfreado em que nunca participava.

Anos passaram, todos se cansaram e os dois amantes lá casaram.
Ele e os irmãos viram morrer a mãe de cirrose. Pequenos e sem dinheiro ficaram. Lá corriam na meta da vida, sozinhos e sem testemunhos para passar.

Ela é uma menina adoptada. Impingida numa adopção forçada à madrasta, conseguida através do prazer fétido do pai com uma qualquer prostituta.
Que afinal a esposa era atrofiada das trompas. Que afinal a esposa lá a foi criando com sopinhas de ciúmes mudos e papinhas enraivecidas em constante cicatrização.

Ela nunca quis conhecer o sangue da mãe barriga-de-aluguer e se pudesse fazia uma transfusão total de sangue da madrasta que, por sua vez, não dava o seu sangue por ela.
Ele nunca mais quis identificar o sangue do pai que milhentas vezes enchia a barriga da amante de abortos consecutivos.

Ele e ela conheceram-se numa idade bonita e na altura devida se casaram.
Deram o primeiro beijo na boca na noite de núpcias e sem travo a álcool.
Programaram o dia da concepção do rebento através das técnicas naturais e das contas da quarta classe, sem erros, tirando a provas dos nove quando ele nasceu precisamente no dia planeado, na data de casamento deles.
Sempre que se tentavam amar sem intenção de procriação, não se tocavam nem se rendiam ao prazer, seguindo sempre as páginas do Kamasutra Divino.

Pessoas que nunca falharam a nada nem a ninguém.
Pessoas que sempre viveram acorrentadas ao sangue que recusaram pertencer.
Pessoas que sempre viveram com o fardo da vergonha dos progenitores, que nunca a tiveram.
Pessoas que hoje dormem em quartos separados e já festejaram cinquenta anos de casados.