quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Carmindinha


A D. Carminda, ou Carmindinha, como lhe chamavam, já vivia há muito tempo no Lar da Santa Casa da Misericórdia.

Já não contava os anos, mas sabia que tinha sido há mais de 10 anos, que a filha solteira a tinha deixado lá uma tarde. Não sabia, porém, se a filha já teria casado.

Na sua eterna inocência ainda achava que as "meninas da porta" nunca a deixaram entrar nas visitas que, concerteza, terá tentado.

A sua vida nesta casa era, então, muito aborrecida. Havia "meninas" para tudo e ela não podia fazer nada. Nem tomar um duche descansada. Berrava com voz tímida todas as vezes: "Assim a pele cai toda. Só quero o meu bidé!" e soluçava engasgada.

Passava todas as noites a pensar que o instante que estava a viver era o penúltimo da vida dela, anseando que o próximo fosse a morte.

Ela era diferente. Não fazia como os colegas que engoliam as "pírulas" todas depois de jantar. Tinha um lenço próprio, que só ela o lavava, e onde despejava toda essa "mexericórdia de porcaria".

Só não percebia porque é que os colegas dormiam toda a noite e ela não.

Mas isto de não dormir era bom, só ela estava presente quando um deles levava a sua hora. Durante a aflição destes, sussurrava "Louvado seja o Senhor" sempre com ciúmes deles por irem primeiro.

No mês passado morreu a "Ti" Alzira das flores, sua companheira de quarto.

Entretanto, logo passados dois dias, entrou o Sr. Alfaiate para a vez dela. Dizem que não havia mais camas e teve que lá ficar.

Ele era como ela de noite. Sempre a falar baixinho coisas que ela não percebia. Ela não se importava porque também não dormia.

De dia ele era muito simpático com as "meninas", até fazia "ginástiques" e via "televison" na sala grande.

Ela ficava sempre no jardim a preparar e a anteceder a momento que tanto esperava.

Há quinze dias que a Carmindinha rejeitava os cuidados das "meninas" porque elas ligavam mais a ele.

Ele, além do mais, não fala com ela e se fala é de noite e agora como ela só tem uma audição, não o percebe. Antes ouvia os grilos a 20 km, para lá do moínho da quinta. Disso ainda se lembra.

O Sr. Alfaiate todas as noites não prega olho à espera da resposta à proposta de casamento que lhe fez na primeira semana, quando entrou. Ela é fina mas não mais do que ele, sabe bem que ela não dorme mas não fala e ele está a perder as esperanças.

Há uma semana que o Sr. Alfaiate se levanta de noite e vem fazer-lhe festas na perna mais doente, fala-lhe de histórias ao ouvido menos doente e aperta-lhe tanto a mão que parece que é isso que lhe anda a afectar as "cruzes".

Ela não se ri mas gosta.

Ontem ele voltou a pedi-la em casamento e ela, sem hesitar, aceitou e disse-lhe, até, que nunca se tinha sentido tão feliz.

Casaram hoje e o Sr. Alfaiate só hoje soube que seria o 6º marido da Carmindinha. O Padre disse-lhe antes da cerimónia. Mas alertou-o que ela não sabe e não se lembra.
Agora já não pensa em morrer.

Antes ele do que ela.

E pela 6ª vez todo o Lar festeja, à custa dela, a bom comer e beber.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Até Ficares Cansado


Ainda falta meia-hora. Não aguento mais... as mensagens, as chamadas para o telemóvel, para casa... C-H-E-G-A!


Que desespero desperdiçado.


Não tenhas medo do que não tens. Tudo pior que possas imaginar não passa por aí porque de mim nunca vais ter o melhor.


Descansa pelo menos 5 minutos para me presenteares com uns poucos minutos de Paz. Não...descansa a vida toda. Ficas bem melhor sem mim.


Só faltam 2 minutos para, supostamente, me encontrar contigo e parece que já sabes que não vou aparecer. Tens razão. Sempre tiveste.


No fundo, acho que sabes tudo o que te ia dizer e não consigo.


Vou fugir para a eternidade de fingir. Fingir que nunca te vejo e que nunca te ouço.


Um dia, quando tiveres mais rancor que ódio, deixas de me amar já que dizes que isso é amor.


E vais ser feliz e eu vou ser mais feliz ainda por não carregar o teu fardo.


Agora...espera até ficares cansado.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Senhor


Era um senhor. Um Doutor que gostava de ser senhor.

Um dia, acordou com um aperto no braço, quase igual ao do medidor de tensão arterial quando já não dá para apertar mais, quando o extremo dá sinal de vida, ou seja, nos sufoca de morte.

Acordou e não sabia onde estava nem quem era e não foi por momentos mas sim por minutos que estagnaram.

Pensou que tivesse mesmo morrido depois de tantos pensamentos a flutuar que lhe entupiam a sobriedade que nunca o deixava ficar.

Estava num quarto de hotel que a empresa disponibilizou para os dois dias de férias depois de trinta e seis anos de trabalho sem respirar um dia que fosse. Um dia. Que infeliz seria...

Acordou pela segunda vez e já era o senhor. Refez as malas quase nem desfeitas e esperou no aeroporto pelo primeiro avião para casa. Para casa e para o trabalho. Sem eles não sabia viver.

Foi assim a história do senhor que apenas precisava de um dia como os de sempre. Era feliz sem respirar e quando havia ar só para ele, morria.