sábado, 27 de dezembro de 2008

Casa da Magia


Lá dentro havia seda, havia algodão e havia linho.

Lá dentro havia ouro, havia prata e havia platina.

Lá dentro havia riso, havia sorriso e havia felicidade.

Lá dentro havia tudo de espectacular e tu não passavas perto da porta.

Nem sequer rodeavas, nem sequer uma ponta de curiosidade e eu roía-me só de magicar como tal seria possível.

Tudo o que toda a gente desejou, em todos os tempos, estava ali. E tu aqui, sem mexeres nenhuma parte de ti.

A explicação estava contigo e mais ninguém. Eras o único da aldeia que nunca tinha sequer espreitado a casa de magia. E não era uma magia qualquer, dessas que são inventadas e nos tapam os olhos, era uma magia real e única.

Estudiosos davam voltas ao que tinham e não tinham para descobrir tal fenómeno mas todos os estudos foram inconcluídos por escassez de dados concretos.

Pedi-te uma vez que fosses lá comigo e, sem resposta, desapareceste durante três semanas.

Pedi-te outra vez que me levasses só a espreitar, com a desculpa do medo e, sem resposta, desapareceste durante três meses.

Perguntei-te, então, se a tal casa teria sido obra tua e, sem resposta, desapareceste durante três anos.

Esta rotina matou-me e os teus afastamentos apunhalaram-me já cadáver.

Já passou um ano desde a tua última aproximação, que recusei, e hoje não sei nada sobre ti. Também fugi. Mas nem a campaínha nem o telefone me contaram mais nada. E eu, cadavér, continuo aqui. Ninguém me leva para a morgue para me fazerem festinhas com o bisturi...

Enquanto espero ou te espero, vou dormir mais um sono de morte.


(Serei, pelo menos, a tua Bela Adormecida?)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O Casamento


O sono dela despertou em tons de roxo-funeral.

O sonho tinha-lhe oferecido, de bandeja, violentos seres em formato de perseguição.

O relógio da igreja ainda não tinha contado as 7h, já ela preparava o pequeno-almoço para ele: o mesmo de há 38 anos: sumo de laranja e torradas a verter manteiga. Arrumava o tabuleiro dele e contentava-se com um naco de papo sêco que a padeira acabava de deixar na maçaneta da porta.

Nisto, já eram horas das compras, sempre com as quantias conversadas e todas as contas bem feitinhas, desde dia anterior.

Durante todo o percurso ela não olhava nada nem ninguém de frente. Principalmente ninguém, segundo ele, todos os homens a desejavam e todas as mulheres a odiavam. A parte das mulheres ela acreditava porque a última mulher que tinha tentado um diálogo com ela, tinha-lhe dito, com toda a lata, que ele andava com uma qualquer da vila, o que era impossível visto que se tratava do "seu" marido.

Chegada a casa, lá preparava o almoço, muito devagarinho, para se poupar no gás.

Ele voltava do único trabalho digno que conhecia (sapateiro) e comia, igualmente devagarinho, para não se entalar e fazer bem a digestão, sempre com ela ao alto, não fosse o caso de precisar de algo.

Depois de ele regressar ao trabalho, ela comia bem rápido, sempre ansiando que ele não voltasse atrás, já que esta era a única altura em que ligava um bocadinho a TV, que só se acendia quando o benfica jogava, não fosse tal bocadinho subir a conta da luz que pagavam certinha, sem acertos, há 38 anos.

A tarde dela era dedicada aos arranjos de costura que as suas clientes traziam todas as semanas, umas senhoras ricas com quem ela nunca falava, não fossem elas abusar da confiança.

Seguia-se o jantar no mesmo tom do almoço sem a parte consolativa da TV.

Depois de arrumar a cozinha, era a vez do banho de imersão "da sexta-feira", único dia da semana com direito a banho completo seguido da habitual meia-hora de violação consentida de boca mais muda que tapada.

Ela não gostava das sextas-feiras.

O resto dos dias eram mais calmos, sem banho comprido nem desespero sofrido.

Apenas o silêncio, lado a lado, de um casamento bem conseguido.

domingo, 14 de dezembro de 2008

A Formiga E O Aquecedor


O corpo dela era um formigueiro com formigas famintas que se comiam umas às outras por falta de alimento.

O corpo dele era um aquecedor de alta potência com o termoestato caóticamente desregulado.

Os dois tentavam mas acabavam por evitar apagar a fome no formigueiro e a má regulação do aquecedor.

O medo dos possíveis arranjos desenhava-lhes o cérebro com medos e fobias inexplicáveis.

Depois de programarem metodicamente aguentarem o sofrimento por mais uns tempos, resolveram apagar de vez a fome e o calor descontrolados e, sem mais programações, mantiveram-se irremediavelmente e permanentemente agarrados.

domingo, 7 de dezembro de 2008

A Íris


A Íris era novinha. A Íris era novinha e muito sonhadora. A Íris deixou de sonhar quando descobriu que tinha uma doença terminal.

Havia pouco a ser feito mas era necessário iniciar rapidamente os tratamentos convencionais de combate ao cancro que a Íris recusou terminantemente.

Ela acreditava que era obrigada a seguir o seu destino e se ele queria ser curto, só tinha que lhe dar o braço a torcer.

Todos se revoltaram contra ela mas nada nem ninguém mudou o rumo da sua fatalidade.

A família arrasada e destroçada afastou-se e os amigos incompreendidos eram só dois, mas pelo mesmo motivo, já faziam frete nas esporádicas visitas.

Ela piorava a olhos vistos e não sonhou um único dia em ter a salvação no seu campo de visão.

Numa última tentativa dos pais, um médico-terapeuta foi lá casa.

Depois de muito conversarem e de não tocarem sequer no assunto minucioso, a Íris num tom bastante efusivo disse-lhe que aceitava ser tratada.

A roleta de tratamentos e viagens não parava de rodar, o cansaço e a má disposição tinham vindo para ficar mas a sua crença irrefectida desvaneceu e morreu.

Agarrou-se à vida como uma lapa sem deixar nunca que a tentassem afastar da rocha-mãe.

A Íris está agora curada e casada com o médico-terapeuta que conseguiu multiplicar o seu destino por muitos e muitos anos de felicidade.

domingo, 30 de novembro de 2008

Fábio


Já fazia muito tempo que o Fábio não tinha crises de preconceito com ele próprio.

Muitos anos pensou que era anormal não por ser anão, mas sim, porque tinha visões diferentes de tudo o que pudesse ter opinião.

Quando tinha que comunicar com as pessoas, sentia-se logo enojado e com náuseas. Sabia que aquela possível ligação se partiria assim que ele abrisse a boca. Mas nem percebia porquê. Só sabia era que ficava tão mal disposto que só lhe apetecia vomitar.

A mãe sempre lhe dissera que ele vivia no mundo da inferioridade mas, antes que ele pudesse perceber o que isso significava, já ela estava prestes a deixá-lo entregue ao mundo das grandezas.

Até lá, tudo de pior que pudesse passar à frente dos seus dois guias espetados a martelo em cada lado da cara, era pequeno. Um pequeno tão pequeno que tinha partes a tender mesmo para o invisível.

As coisas boas nunca chegavam para ele e as más eram tão minúsculas que desapareciam se respirasse duas vezes.

A desproporção do seu mundo nunca foi entendida mas até os médicos (que ainda acreditavam em bruxas e fadas) a associaram ao facto de ser anão. Tudo era muito mais pequeno no seu universo físico e, talvez por esse motivo, a parte mental nunca tivesse experimentado sentimentos de nomes conhecidos.

Vivia sempre no trapézio sentado a baloiçar, nunca tentava levantar-se nem nunca caía lá abaixo.

Mas no dia em que a mãe o deixou para ser tapada pelo cobertor da terra, o Fábio, ao contrário do que todas as pessoas julgavam, derramou uma lágrima. Essas mesmas nunca souberam foi que a lágrima não caiu por ela, mas sim, porque era uma manhã fria em finais de Novembro e os seus olhos constiparam-se pela primeira vez.

A partir desse dia toda a gente ficou a pensar que, afinal, ele era normal.

O Fábio anormal cobriu-se bem tapadinho, aproveitando o grandioso cobertor da mãe e, a partir daí, até ele ficou a julgar ser normal, sem nunca vomitar, apenas por ninguém ir lá espreitar.

domingo, 9 de novembro de 2008

Afazeres


Enquanto o granizo caía lá fora, a menina da D. São era novamente a escolhida para um dos senhores de mais idade que procuravam ainda estes afazeres.

Ela não se importava porque os velhinhos eram mais calmos, já sabiam muito da vida e iam perdendo as capacidades de tudo o que rodeia o centro de gravidade. Eram meigos e gostavam muito de falar e também de apalpar. Sabia bem que alguns vinham acompanhados da pílula milagrosa mas ela tentava sempre, a todo o custo, que eles não a tomassem porque já sabia que a noite era toda por conta dessa côr drogada. E ela tinha um namorado em casa à espera dela, contas para pagar, compras para fazer e tinha, obrigatoriamente, de fazer vários turnos por noite para conseguir ficar sem essas dívidas banais.

Gostava mais dos novinhos, aqueles que ainda tinham o invólucro da menoridade. Eram rápidos, não falavam e de uma timidez que mal lhe tocavam. Ela guiava todo o processo sem custo e com algum prazer.

Os dos 30 aos 60 eram os mais problemáticos. Sempre com exigências, grandes investidas, na sua maioria brutos e tratavam-na como trapos e para isso já bastava a sua consciência que fazia questão de fazê-la sentir ainda mais esfarrapada do que isso.

A parte mais difícil era sempre quando fazia o caminho de volta a casa. As réstias de memória de cada noite davam-lhe pontapés e ela não conseguia sequer proteger os órgãos vitais, lembrando-se sempre do seu amor que ainda estava pior.

O namorado, depois do acidente, além de tetraplégico, deixou completamente de falar e mal a avistava, sorria com o eterno amor nos olhos.

Ela nunca lhe contou como conseguia dar conta de tudo, ser uma boa companheira e a melhor pessoa do mundo.

No trabalho, depois de conhecerem a sua história, era a mais requisitada, mais adorada e até mesmo amada. Quantos não foram os que lhe pediram em casamento.

Durante anos andou confusa, com paixões que começavam e acabavam sem que fossem faladas mas o amor foi sempre só um e no dia em que se despediu voltou ainda mais encantada e apaixonada.

Viveram na reforma que dava até para fazerem viagens de avião todos os verões e esperaram, sempre com o mesmo sentimento, até que tivesse de haver caixões.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Carmindinha


A D. Carminda, ou Carmindinha, como lhe chamavam, já vivia há muito tempo no Lar da Santa Casa da Misericórdia.

Já não contava os anos, mas sabia que tinha sido há mais de 10 anos, que a filha solteira a tinha deixado lá uma tarde. Não sabia, porém, se a filha já teria casado.

Na sua eterna inocência ainda achava que as "meninas da porta" nunca a deixaram entrar nas visitas que, concerteza, terá tentado.

A sua vida nesta casa era, então, muito aborrecida. Havia "meninas" para tudo e ela não podia fazer nada. Nem tomar um duche descansada. Berrava com voz tímida todas as vezes: "Assim a pele cai toda. Só quero o meu bidé!" e soluçava engasgada.

Passava todas as noites a pensar que o instante que estava a viver era o penúltimo da vida dela, anseando que o próximo fosse a morte.

Ela era diferente. Não fazia como os colegas que engoliam as "pírulas" todas depois de jantar. Tinha um lenço próprio, que só ela o lavava, e onde despejava toda essa "mexericórdia de porcaria".

Só não percebia porque é que os colegas dormiam toda a noite e ela não.

Mas isto de não dormir era bom, só ela estava presente quando um deles levava a sua hora. Durante a aflição destes, sussurrava "Louvado seja o Senhor" sempre com ciúmes deles por irem primeiro.

No mês passado morreu a "Ti" Alzira das flores, sua companheira de quarto.

Entretanto, logo passados dois dias, entrou o Sr. Alfaiate para a vez dela. Dizem que não havia mais camas e teve que lá ficar.

Ele era como ela de noite. Sempre a falar baixinho coisas que ela não percebia. Ela não se importava porque também não dormia.

De dia ele era muito simpático com as "meninas", até fazia "ginástiques" e via "televison" na sala grande.

Ela ficava sempre no jardim a preparar e a anteceder a momento que tanto esperava.

Há quinze dias que a Carmindinha rejeitava os cuidados das "meninas" porque elas ligavam mais a ele.

Ele, além do mais, não fala com ela e se fala é de noite e agora como ela só tem uma audição, não o percebe. Antes ouvia os grilos a 20 km, para lá do moínho da quinta. Disso ainda se lembra.

O Sr. Alfaiate todas as noites não prega olho à espera da resposta à proposta de casamento que lhe fez na primeira semana, quando entrou. Ela é fina mas não mais do que ele, sabe bem que ela não dorme mas não fala e ele está a perder as esperanças.

Há uma semana que o Sr. Alfaiate se levanta de noite e vem fazer-lhe festas na perna mais doente, fala-lhe de histórias ao ouvido menos doente e aperta-lhe tanto a mão que parece que é isso que lhe anda a afectar as "cruzes".

Ela não se ri mas gosta.

Ontem ele voltou a pedi-la em casamento e ela, sem hesitar, aceitou e disse-lhe, até, que nunca se tinha sentido tão feliz.

Casaram hoje e o Sr. Alfaiate só hoje soube que seria o 6º marido da Carmindinha. O Padre disse-lhe antes da cerimónia. Mas alertou-o que ela não sabe e não se lembra.
Agora já não pensa em morrer.

Antes ele do que ela.

E pela 6ª vez todo o Lar festeja, à custa dela, a bom comer e beber.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Até Ficares Cansado


Ainda falta meia-hora. Não aguento mais... as mensagens, as chamadas para o telemóvel, para casa... C-H-E-G-A!


Que desespero desperdiçado.


Não tenhas medo do que não tens. Tudo pior que possas imaginar não passa por aí porque de mim nunca vais ter o melhor.


Descansa pelo menos 5 minutos para me presenteares com uns poucos minutos de Paz. Não...descansa a vida toda. Ficas bem melhor sem mim.


Só faltam 2 minutos para, supostamente, me encontrar contigo e parece que já sabes que não vou aparecer. Tens razão. Sempre tiveste.


No fundo, acho que sabes tudo o que te ia dizer e não consigo.


Vou fugir para a eternidade de fingir. Fingir que nunca te vejo e que nunca te ouço.


Um dia, quando tiveres mais rancor que ódio, deixas de me amar já que dizes que isso é amor.


E vais ser feliz e eu vou ser mais feliz ainda por não carregar o teu fardo.


Agora...espera até ficares cansado.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Senhor


Era um senhor. Um Doutor que gostava de ser senhor.

Um dia, acordou com um aperto no braço, quase igual ao do medidor de tensão arterial quando já não dá para apertar mais, quando o extremo dá sinal de vida, ou seja, nos sufoca de morte.

Acordou e não sabia onde estava nem quem era e não foi por momentos mas sim por minutos que estagnaram.

Pensou que tivesse mesmo morrido depois de tantos pensamentos a flutuar que lhe entupiam a sobriedade que nunca o deixava ficar.

Estava num quarto de hotel que a empresa disponibilizou para os dois dias de férias depois de trinta e seis anos de trabalho sem respirar um dia que fosse. Um dia. Que infeliz seria...

Acordou pela segunda vez e já era o senhor. Refez as malas quase nem desfeitas e esperou no aeroporto pelo primeiro avião para casa. Para casa e para o trabalho. Sem eles não sabia viver.

Foi assim a história do senhor que apenas precisava de um dia como os de sempre. Era feliz sem respirar e quando havia ar só para ele, morria.


sábado, 27 de setembro de 2008

4 pensamentos e 1 fala


(Bem, como dizer-te isto sem que me queiras ver mais vezes...

Tu não fazes nada por mal mas fazes tudo mal!

Quando eu digo com calma é com calma, quando eu digo rápido, é rápido; quando eu digo que não quero, se for com jeitinho até quero; quando digo que quero, então aí é porque quero.

Quando eu digo para não me ligares é porque para ti não tenho sítio para isso. E se alguma vez te chegar a pedir, lembra-me de pedir antes um café porque posso estar a dormir.

Só mais uma coisa...quando falas muito só estragas, és bonito mas só na fotografia.)

- Até amanhã lindo...Olha, e se não te importares, agora deixa-me virar para o lado de lá que o meu sono não gosta muito de companhia...

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Menina Que Nunca Saia De Casa


Quando ela vinha à janela já todos a esperavam.

Todos sabiam os seus passos, as suas rotinas, os seus horários.

Ninguém conhecia o seu aspecto de perto.

Ninguém sabia a sua idade.

Ninguém percebia o seu sustento.

Todos sabiam quem ela era.

A menina que nunca saiu de casa.

Mas ninguém sabia explicar e todos queriam descobrir porquê.

Como se fossem ganhar uma taça ou uma recompensa por isso.

Gritavam-lhe ameaças se não aparecesse.

Prometeram até chamar a televisão.

Chegou uma altura que nem dormia.

De hora de hora, ou menos que isso, tocavam-lhe à campaínha.

Passaram-se dias e dias e ela não se aproximava da janela.

Os polícias vieram e depois de muito baterem à porta, arrombaram-na.

Procuraram todos os cantos dessa enorme casa onde morava.

Cheia de nada.

Nem um fio de cabelo, nem um pêlo.

A menina tinha evaporado.

A menina passou a assombrar todos aqueles que a enervaram.

Esses morreram, os outros sobreviveram com um medo assolapado.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Lixo


Estilhaços de madeira voam pelo ar

A brisa na viela torna-se fluorescente e rasga o olhar de quem passa

O mar torna-se longuínquo e nunca mais ninguém o viu

As casas encavalitam-se umas nas outras qual é o medo de morrerem sozinhas

Os seres transformam-se em bonecos de papel e voam como aviões de brincar

É tudo lixo

E não fica cá ninguém para reciclar.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Abóboras


Quando o mar subiu e o sol se ia afongando lentamente, senti a brisa apagada da tua presença.

Uma presença seca, áspera e crua que não me serve de contentamento.

O sol finalmente deixou de respirar por hoje e entro sozinha na minha cabeça vazia.

Desperto porque ao longe vejo uma parka verde e uns pés descalços. Sim, até daqui parecem descalços. Volto a cabeça como sinal de desinteresse.

Sinto algo a aproximar e temo por segundos. O cão é engraçado mas nunca gostei que me cheirassem.

Um cão bem cuidado mas rafeiro. Um cão perdido ou... o teu cão. Não quero que seja teu. Não quero mesmo.

Passas em marcha lenta por detrás e chamas o canino num som que mais parecia uma consoante só.

Eu não me mexo nem com tamanha curiosidade da percepção da tua imagem.


- Esteve um lindo dia!


(Ups, e agora?)


Rodo a cabeça uns 45 graus para não parecer muito e aceno com a cabeça.


- Amanhã estará igual. Costumo não errar! - afirmas convicto demais.


- Sim, é capaz... Boa tarde. - respondo, desacreditada e como forma de antecipar a despedida.


- Tenha uma boa noite e desculpe a intromissão dos dois.


- De nada.


(e esqueci-me do obrigada... e do igualmente...)


Enfim sós, novamente, com a cabeça entre as pernas doridas e com as mesmas pernas a rodear esta abóbora agarrada ao corpo. Que incha, desincha e só passa quando durmo e ela se tranforma em cinderela.

Está escuro mas não tenho medo. Tenho mais medo que me levem o carro do que a mim.

Chego ao carro que deixei propositadamente a 1 km para cansar ainda mais estas duas que me seguram. Tudo para apagar a vida real mais cedo quando for hora de me deitar.

Fumo meio cigarro o mais devagar que consigo e antes de arrancar lembro-me que amanhã o dia vai estar igual.

A imagem de ti ecoa durante uns segundos, poucos mas os suficientes para me convencerem a voltar amanhã. Acho que sim... mas só se o tempo estiver bom.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Não sei dizer...


Não sei explicar. Não sei dizer...

Os olhares são todos iguais. Os de interesse, os de desinteresse, os desprezíveis, os apetecíveis...

O teu não sei explicar. Não sei dizer...

A beleza resume-se às combinações ou da totalidade do bonito, normal e feio.

A tua não sei explicar. Não sei dizer...

A inteligência existe ou não existe, tem subtipos e são todos mensuráveis.

A tua não sei explicar. Não sei dizer...

Porque sinto que vou gostar demasiado de ti.

Porque sinto que vais gostar de me conhecer...

Não sei explicar. Não sei dizer...

Vou ficar aqui à espera do tiro de partida para corrermos a corrida mais longa em resistência, inventada por nós, lado a lado, até cortarmos a meta empatados.

domingo, 20 de abril de 2008

Eles os Dois


Ela -Sabes o que era bom agora? (enroscando-se nas pernas dele)

Ele - Hum... Não sou bruxo...

Ela - Que me preparasses o pequeno-almoço...Estou tão doentinha...

Ele - Sabes o que era bom agora? (afastando-a ligeiramente)

Ela - Também não sou bruxa...

Ele - Que me deixasses dormir mais uma hora porque é domingo e porque eu mereço com a semana que tive. Não imaginas o que é trabalhar! Pára com esse tipo de choraminguices e deixa-te de armar em vítima. Se estar com o período é doença, mais de metade da população mundial faltava pelo menos 3 dias por mês. (vira-se de costas)

(ela levanta-se, come qualquer coisa à pressa, e sai preparada para correr)

(ele levanta-se passada uma hora e meia, toma duche e vai para o sofá ver televisão)

(são 14h, ele continua à espera)

(são 16h, ele vai preparar alguma coisa para enganar o estômago)

(são 18h, ele recebe um telefonema da sogra em gritos mudos a dizer que a mulher foi atropelada na passadeira a 200 metros de casa e que tinha sofrido um traumatismo craniano)

(são 19h, ele pega no carro e vai à passadeira onde tudo aconteceu e olha para ela, sem ver, sem pensar, sem nada)

(são 21h, ele está na sala de espera do hospital e sem esperar o médico disse-lhe sem voz que ela não resistiu)

(são 23h, ele vai para casa, depois de tratar das formalidades injustas de uma morte)

(são 00h, ele toma o frasco todo de ansiolíticos da mulher)

(são 15h, ele não comparece ao funeral da mulher)

(são 15h do dia seguinte, ele vai a enterrar).

domingo, 9 de março de 2008

Adélia


Adélia era o nome dela.
29 verões completados, sofria de enxaqueca crónica e de fobias inesplicáveis.
Todos os dias antes de se deitar corria o mesmo ritual e se fizesse alguma coisa diferente das outras noites, voltava para trás e com a paciência que a caracterizava, começava tudo do início.
Ligar não mais de 3 minutos ao namorado para se despedir, beber leite com Cola-Cao light, lavar a cara, os dentes, hidratar a pele e os lábios, desfazer a cama cuidadosamente e ver não mais de 15 minutos o filme do momento na rtp1. Numa noite dessas tinha tido um pesadelo enorme: estava grávida.
O namorado quando soube procurou logo outro alvo de engate, em 2 dias engordou 5 quilos, as estrias atacaram toda a sua pele, borbulhas enomes cravaram-se na cara, os enjoos eram de morte e num grito de sufoco, acorda com taquicardia e a enxaqueca explodiu.
Os pais correram com ela para o hospital e os médicos apenas fizeram umas análises para não a mandarem logo embora.
No final disseram aos pais que não a iam medicar devido ao estado dela.
Grávida de quase três meses, Adélia soube assim a sua sina.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Demónio


Dentro da aldeia todos lhe chamavam "Demónio".
Um rapaz de olhos negros, cabelo seco quase gretado, mãos escuras de lixo e boa disposição sem causa aparente.
Todos os dias saía às 7h e voltava às 19h.
Ninguém sabia para onde ia durante esse tempo e ninguém nunca se preocupou em saber.
Morava numa cabana feita de madeira quase desfeita mas nenhuma frincha trespassava para o interior.
Ninguém sabia como vivia e nunca ninguém se preocupou em saber.
Quando o bom tempo ameaçou a aldeia, todos tinham o hábito de tomar a primeira refeição do dia do lado de fora das casas.
O Demónio passou a fazer o mesmo dias e dias a fio até que um menino deu pela presença dele e sentava-se a seu lado sem falar.
Quando batiam as 7h lá ia ele de caminho incerto pela estrada principal.
Outros dias correram e num igual aos outros o menino que não falava resolveu segui-lo.
Depois da encosta havia um rio onde ele tomou banho e lavou as roupas, na mão um saco com uma muda de roupa nunca vista pelo menino, cara, da boa.
Mais 1h50 em caminho principal e chegou à cidade.
Entrou num edifício novo, grande, com muitos vidros e o menino contou 6h até o Demónio voltar a sair.
Caminho inverso, muda de roupa velha, já seca e de volta a aldeia.
O menino nunca falou.
Ninguém sabia para onde ele ia durante esse tempo e alguém se preocupou em saber.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Eles


Ele - Queres vir até à ponte?

Ela - Levas-me no quadro ou tenho que levar a minha?

Ele - Posso-te levar...

Ela - Mas eu sou pesada e tenho medo de andar rápido!

Ele - Então trás a tua. Despacha-te!

Ela - Despacho nada, ainda demoro a ir buscá-la e depois também não vais ao meu ritmo e fico para trás. Não vou.

Ele - Eu espero por ti mas vai lá rápido!

Ela - Estás a ver? Não consegues esperar. Já está em ti. Agora é que não vou!

Ele - Então vou sozinho. Só me chateias!

Ela - Se prometeres que esperas, eu vou então...

Ele - Se prometeres que vais buscar rápido o raio da bicicleta...

Ela - Até já.

Ele - Assim está melhor.

Ela - És mau. Que coisa!

Ele - E tu és parvinha todos os dias! (rrrrr)


quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Avô


Era Janeiro.

Fazia calor e o tempo estava encoberto.

O vento abanava bastante as velas do barco que se via ao longe.

A maré estava irritada e as ondas tinham compasso apressado.

Era quinta-feira.

Era o dia do avô levar o neto a pescar.

Nas rochas maiores e mais lisinhas lá estavam eles.

Com a felicidade que só traziam uma vez por semana.

Com a cumplicidade que só o mesmo sangue consegue.

O avô estremece, estremece e cai na água.

O neto vai atrás mas volta sem ele.

Era o melhor funeral que lhe poderiam dar.

Foi o dia do neto levar o avô a pescar.