domingo, 30 de novembro de 2008

Fábio


Já fazia muito tempo que o Fábio não tinha crises de preconceito com ele próprio.

Muitos anos pensou que era anormal não por ser anão, mas sim, porque tinha visões diferentes de tudo o que pudesse ter opinião.

Quando tinha que comunicar com as pessoas, sentia-se logo enojado e com náuseas. Sabia que aquela possível ligação se partiria assim que ele abrisse a boca. Mas nem percebia porquê. Só sabia era que ficava tão mal disposto que só lhe apetecia vomitar.

A mãe sempre lhe dissera que ele vivia no mundo da inferioridade mas, antes que ele pudesse perceber o que isso significava, já ela estava prestes a deixá-lo entregue ao mundo das grandezas.

Até lá, tudo de pior que pudesse passar à frente dos seus dois guias espetados a martelo em cada lado da cara, era pequeno. Um pequeno tão pequeno que tinha partes a tender mesmo para o invisível.

As coisas boas nunca chegavam para ele e as más eram tão minúsculas que desapareciam se respirasse duas vezes.

A desproporção do seu mundo nunca foi entendida mas até os médicos (que ainda acreditavam em bruxas e fadas) a associaram ao facto de ser anão. Tudo era muito mais pequeno no seu universo físico e, talvez por esse motivo, a parte mental nunca tivesse experimentado sentimentos de nomes conhecidos.

Vivia sempre no trapézio sentado a baloiçar, nunca tentava levantar-se nem nunca caía lá abaixo.

Mas no dia em que a mãe o deixou para ser tapada pelo cobertor da terra, o Fábio, ao contrário do que todas as pessoas julgavam, derramou uma lágrima. Essas mesmas nunca souberam foi que a lágrima não caiu por ela, mas sim, porque era uma manhã fria em finais de Novembro e os seus olhos constiparam-se pela primeira vez.

A partir desse dia toda a gente ficou a pensar que, afinal, ele era normal.

O Fábio anormal cobriu-se bem tapadinho, aproveitando o grandioso cobertor da mãe e, a partir daí, até ele ficou a julgar ser normal, sem nunca vomitar, apenas por ninguém ir lá espreitar.

domingo, 9 de novembro de 2008

Afazeres


Enquanto o granizo caía lá fora, a menina da D. São era novamente a escolhida para um dos senhores de mais idade que procuravam ainda estes afazeres.

Ela não se importava porque os velhinhos eram mais calmos, já sabiam muito da vida e iam perdendo as capacidades de tudo o que rodeia o centro de gravidade. Eram meigos e gostavam muito de falar e também de apalpar. Sabia bem que alguns vinham acompanhados da pílula milagrosa mas ela tentava sempre, a todo o custo, que eles não a tomassem porque já sabia que a noite era toda por conta dessa côr drogada. E ela tinha um namorado em casa à espera dela, contas para pagar, compras para fazer e tinha, obrigatoriamente, de fazer vários turnos por noite para conseguir ficar sem essas dívidas banais.

Gostava mais dos novinhos, aqueles que ainda tinham o invólucro da menoridade. Eram rápidos, não falavam e de uma timidez que mal lhe tocavam. Ela guiava todo o processo sem custo e com algum prazer.

Os dos 30 aos 60 eram os mais problemáticos. Sempre com exigências, grandes investidas, na sua maioria brutos e tratavam-na como trapos e para isso já bastava a sua consciência que fazia questão de fazê-la sentir ainda mais esfarrapada do que isso.

A parte mais difícil era sempre quando fazia o caminho de volta a casa. As réstias de memória de cada noite davam-lhe pontapés e ela não conseguia sequer proteger os órgãos vitais, lembrando-se sempre do seu amor que ainda estava pior.

O namorado, depois do acidente, além de tetraplégico, deixou completamente de falar e mal a avistava, sorria com o eterno amor nos olhos.

Ela nunca lhe contou como conseguia dar conta de tudo, ser uma boa companheira e a melhor pessoa do mundo.

No trabalho, depois de conhecerem a sua história, era a mais requisitada, mais adorada e até mesmo amada. Quantos não foram os que lhe pediram em casamento.

Durante anos andou confusa, com paixões que começavam e acabavam sem que fossem faladas mas o amor foi sempre só um e no dia em que se despediu voltou ainda mais encantada e apaixonada.

Viveram na reforma que dava até para fazerem viagens de avião todos os verões e esperaram, sempre com o mesmo sentimento, até que tivesse de haver caixões.