O ouvido dele já teve melhores dias.
A cabeça ruidosa não o deixa filtrar os seus tão queridos barulhos.
Mas ele não era assim.
Ele distinguia as folhas a passearem no chão. Sabia de que árvore-mãe elas eram. Sabia que elas queriam conhecer outros sítios além do galho e outras folhas que não as suas vizinhas. Sabia que elas não sabiam que depois de se deixarem cair, já não podiam subir para a árvore-mãe nem arranjar mais nenhuma emprestada. Sabia que elas eram apanhadas para serem coladas ou esparramadas até ficarem lisinhas, junto das linhas, quadrados e letras de cadernos ou livros. Sabia que eram calcadas pelas vulgares pessoas ou atropeladas pelos velozes carros. Sabia até que eram varridas e que se transformavam numa mousse de asqueroso lixo.
Ele também percebia de carros.
Ele distinguia o velho carro do carro com poucos anos e do carro ainda mais recente. Sabia bem que os motores assobiavam com tons bem distintos. Sabia que uns arrotavam de malcriados, uns tossiam de doentes e outros cantavam de plena saúde. Sabia quando passava um a gás, de onde a onde, e sempre esperou que descobrissem um a água. Sabia até acertar em alguns modelos de acordo com o comportamento dos motores.
A sua única brincadeira, quando era novo, era exactamente gabar essa sua faceta nos intervalos, tendo os colegas a comprovarem-lhe a veracidade das suas pujantes tentativas adivinhatórias.
À noite era o seu íntimo que lhe dava a comprovação das suas adivinhas. Ele acreditava muito no seu interior, não estivesse o seu ouvido interno lá dentro também. Sabia que nem só as mulheres tinham intuições.
Ele não gostava de mulheres.
Sabia que elas falavam muito e muito mal nas costas. Sabia que elas eram tão falsas que elas próprias se acreditavam nas suas majestosas mentiras. Sabia que as lágrimas delas só deslizavam à superfície e que por pouco tempo choravam pelos mesmos motivos. Sabia até que elas não conheciam o que ele conhecia.
Ele não gostava assim muito de homens.
Sabia que eles não gostavam dele e eram gozões. Sabia que eles sempre pensaram que ele seria maricas. Sabia que eles lutavam pelas mesmas mulheres e se traíam uns aos outros por causa desse tão antigo pecado. Sabia até que eles, ainda menos do que elas, conheciam o que ele conhecia.
Isto porque ele vivia durante o dia e durante a noite, sem um único intervalo.
Vivia, portanto, o dobro das pessoas e até quase o dobro de alguns animais mais dorminhocos que ele bem conhecia.
Ele aprendia mais de noite em casa a escutar do que de dia na escola a estudar.
Ele distinguia o tamanho das gotas da chuva que disparavam em queda-livre contra o chão do seu quintal. Sabia até os segundos da frequência das suas aterragens.
Agora ouve mal, está velho e não tem companhia.
Ele, que até distinguia todos os passos das pessoas que conhecia, agora mal consegue ouvir a campaínha.