quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pedras


Sorri para a professora que nem olha para ele.
Ao sair da sala tropeça na mochila do rei da turma e de cachaço dorido sai porta fora.
Passando o lancil, repara com desânimo que todos têm alguém à espera. Nem sempre é assim, há um ou outro familiar que se atrasa que é quando, dentro dele, até chega a existir um pequeno lugar de contentamento, apenas por esse outro alguém também sofrer por ter que esperar. Sente-se mais acompanhado mas preferia acompanhar-se de alguém que não era de ninguém. Como ele.
Segue chutando todas as pedras bonitas que encontra pelo caminho. Se alguma se perde, volta atrás para a buscar e pede-lhes desculpa por as arrastar.
Chega a casa do avô e guarda na lata de Coca-Cola as pedras que apanhou. Uma a uma, algumas a custo, outras folgadas lá se vão apertando umas nas outras enquanto se ouve proferir a lenga-lenga do costume: "obrigada por confiares, agora ninguém te vai magoar".
O avô, esse, está sempre no quarto. Tem uma senhora que cuida dele de dia e lhe traz as refeições da Santa Casa que o padre lá se conseguiu orientar.
Ele fica-se pelo almoço na cantina, em formato de senha isenta de pagamento e pelo pão com manteiga que a empregada do bar lhe costuma desviar.
A esta hora, que a fome aperta, é a melhor hora para se ir deitar.
Há mais de uma semana que ninguém lhes paga a botija do gás e ele chora minutos a fio antes de o sono o levar. Chora, tem vezes, horas só por estar a chorar e sem saber porque chora.
De manhã, espreita para dentro da lata, olha para as pedrinhas todas juntinhas e sussurra-lhes uma canção. Mas nunca é a mesma para não as cansar.
Pega na mochila e segue caminho sempre a olhar o chão na tentativa de encontrar mais uma pedrinha para entretanto cuidar.
E enquanto esperneia de dores na porrada dos intervalos, e enquanto é espezinhado pela professora dentro da sala, imagina estar dentro da latinha para que alguém, um dia, num qualquer lugar... também lhe possa sussurrar: "obrigada por confiares, agora ninguém te vai magoar".

4 comentários:

fred disse...

Houve um dia que carreguei na mochila, não uma pedra mas um pedragulho. Não por ser bonita, mas por ser diferente.
Numa outra vez guardei uma mais pequena. Era parideira. Levei-a a ver se se multiplicava e nada feito.
Uma outra vez comprei uma ainda mais pequena do que as outras. Fumei-a e desatei-me a rir!
Acho que o problema do rapazinho é ter uma pedra no sapato sem saber!

Bjo (:

ZicKroft disse...

Mentiria se dissesse que este não é o teu melhor Post. Está muito bom, e cabe-te a ti, senhora professora, não discriminar meninos e não permitir abusos. *

Mário, o Dimas disse...

Reitero tudo o que lhe "postei" anteriormente sobre a sua escrita, pois vivenciei e assisti episódicamente na pele, na minha suburbana escolaridade, a alguns dos restrições morais infligidas ao seu protagonista e que agora são tão referenciadas nos media, tão tardiamente, como se constatou no trágico desfecho de um jovem 12 tenros anos vitima de bulling, sem que o sistema assuma e resolva determinantemente, esse flagelo de sempre.`´E interessante que tenha colocado a professora como elemento de actuante na acção repressora. Felizmente que a maioria éconsciente da sua missão educativa e formativa para que mais e mais meninos possam ouvir em alta voz: "obrigado por confiares...".

sevejocosilva disse...

E você, que conta tão bem a história, nada pode fazer para torná-la diferente?