terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Concurso


Quando era pequenina tinha ganho um concurso.
Não daqueles concursos de televisão nem passatempos de casa infantis, ganhou um que ultrapassava todos esses e lhe deu o melhor prémio possível. Não Nintendos nem Castelos de Barbies.
O concurso parecia simples.
Encostada a uma cama de hospital com Febre Aftosa em estado avançado, sem defesas e à porta da morte, tinha que aguentar não chorar para ganhar aos outros meninos na mesma situação.
Esteve 21 dias internada e ganhou a todos que entravam, que saiam e que morriam.
No final a equipa que a tratou perguntou-lhe como tinha conseguido, além do milagre da vida, o carrego da dor.
Ela, tímida, sorriu e perguntou o que tinha ganho. Ao que o médico, ditador do concurso, lhe respondeu: "Ganhaste a vida".
Ela, imediatamente, entrou em pranto, sem perceber porque o médico a tinha enganado. Tanto esforço...para nada.
"O que é a vida? Eu não posso brincar com a vida nem às vidas... Quero um brinquedo!".
Por mais que lhe tentassem explicar, só mais pranto lhe conseguiam arrancar.
Depois de deixar o hospital, quando as empregadas foram fazer as camas de lavado, deram com o colchão todo desfeito, por baixo do lençol intacto que camuflou o sofrimento mudo e em vão daquela estranha criança.
A partir desse dia, a criança chorava todas as noites, gritava, esperneava, batia nela própria e sofria de ataques de ansiedade constantes. Um deles foi tão forte que foi parar novamente ao hospital porque tinha sofrido uma queda bastante aparatosa.
O médico que a atendeu foi o mesmo que a tratou e ela, sem que ninguém prevesse, desatou aos murros e pontapés contra o pobre médico com toda a raiva que a movia.
Levaram-na para a ala psiquiátrica infantil. Lá permaneceu 5 meses. Ao final desses meses, sem qualquer tipo de melhoras, deram-lhe alta, receitando-lhe, no entanto, umas consultas de apoio psicológico semanais, até perfazer mais meia dúzia de meses.
O psicólogo que lhe dava as consultas domiciliárias, resolveu voltar a juntá-la ao médico para perceber a sua reacção e se tinha havido melhoras.
Ela, estática, fingiu que ele não estava lá, mesmo quando ele pegou na cabeça dela à força, obrigando-a a olhar nos olhos. Ela apenas os revirou, qual monstro em estado embrionário.
O médico mandou bom-bons pelo psicólogo. Ela deitou-os ao chão e calcou-os um a um. Com muita calma, já curada da raiva.
Os psicólogos rodavam em frustração, alguns até recusaram imediatamente o caso dela que se constava maligno em todo o hospital.
A menina entrou na escola mas não aprendia nada e ficou 3 anos retida. Esteve até um ano inteiro com uma professora de ensino especial e não mostrava ponta de motivação e desenvolvimento.
Desistiram da miúda que tinha há muito desistido dela própria.
Quando se tornou mulherzinha, interessou-se por um dos milhentos psicológos que a aturavam e partiu logo para a acção. O coitado, estagiário, já assustado com aquele horrível quadro, empurrou-a com a sua força de leão. Ela cai desamparada no chão, bate com a fonte numa esquina da mesa da sala, abre-a e de volta ao hospital. De volta ao mesmo médico que a atende.
Ela parecia bem mas passou uma noite em observações. Observada pelo médico que já tinha a hora de saída expirada e continuava lá ao alto. Quando acordou, de manhãzinha, olhou nos olhos dele e ele pediu-lhe desculpa.
Ela saiu daquele hospital aparentemente curada.
Estudou afincadamente o ensino básico e secundário, ganhou menções honrosas e acabou por escolher o curso de enfermagem. Entrou naquele hospital, na ala pediátrica.
Quando reparava em algum caso parecido com o seu, contava a sua história e conseguia que as crianças tivessem a força que ela teve, sem esperarem nada em troca.
Era a enfermeira que todos os meninos queriam ao lado na dor e ela já os anestesiava de cor.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

MalMeQuer


Anteontem ele recolheu um Malmequer.
Desflorou-o com as palavras "Bem-me-quer ou Mal-me-quer" mas não decorou a última palavra dessa lengalenga.
Voltou ao sítio deles e recolheu outro Malmequer mas, sem se aperceber, colheu dois de uma tirada, um caiu, o outro esqueceu-se de o desflorar porque estava atrasado.
Foi a correr para o jardim junto à Escola e esperou que a sua vizinha mais-que-isso saísse.
Mal a avistou, ergueu sem querer o Malmequer e ela veio de imediato ao seu encontro. Parou junto dele e corou quando olhou para o Malmequer que ele trazia na mão. Ele, tímido, estendeu-o e ela agarrou nele com muita precisão. Despedaçou-o e a lengalenga acabou em Mal-me-quer. Rapidamente atirou o restante talo para o chão e calcou-o com o que parecia um misto de raiva e desilusão. Até assim ela era bonita.
Foram juntos a caminho da eira da avó dela, onde era costume trocarem uns beijinhos mesmo juntinho-aos-lábios.
Ao contrário do que ele esperava, ela não lhe tocou na mão todo o caminho e quando chegaram ao local, entretanto só deles, ela não pronunciou nem um grunhido e fintou extremamente bem e com poucas manobras a sua tentativa de beijinho juntinho-aos-lábios.
Quando começou a escurecer foram para casa sem se olharem e quase sem pestanejarem.
Ele passou toda essa noite acordado fazendo um, dois, três e mais alguns retrocessos em câmara-lenta da recusa que teve, difícil de se contentar e superar.
Depois de mais uns tantos retrocessos sem progressos, achou por bem confrontá-la mal ela saísse da Escola para poder, então, servir-se de, pelo menos, uma explicação.
Depois de nada fazer durante todo o dia, esperou, escondido numa das árvores de tronco grosso do lado de fora da Escola, mais de três horas, o toque de saída. O seu coração já parecia milho-quase-em-pipoca dentro do tacho no impasse da espera e na ânsia do reencontro.
Lá estava ela. Ou parecia ela.
Vestido até aos joelhos salmão com pequenas florzinhas.
Não podia ser ela. Mas parecia ela.
Meias pérola mesmo por baixo dos joelhos e sapatos a imitar as bailarinas, rosa-claros.
Parecia mesmo ela.
Na cabeça uma bandolete pérola com um lacinho de lado, rosa-claro. Toda a combinar.
Só podia ser ela. Ele não queria que fosse mesmo ela.
Vinha tão bonita, risonha, sem jeito, tresloucada... Era ela!
Mas...de mão dada com outro tipo.
Um tipo que estudava... Devia ser melhor do que ele e era, sem dúvida, mais bem aparentado.
Depois de um ano em quase-depressão e depois de árdua e sofrida investigação, descobriu que a relação-maravilha e, até então, estável tinha tido origem num desflorar "Bem-me-quer" de um qualquer, perdido no chão, Malmequer.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Mas Não Páres!


Num ápice o meu corpo estremeceu.
Depois de provado, senti que foi uma mistura de frio, arrepio, calor e dor.
E prazer. Esse, em proporção, ganhou. Sem dúvida.
Estou agora a experimentar outra sensação... Espera... Daquelas em que o som que está fora do nosso corpo se torna tão insignificante que desaparece por causa do turbilhão de emoções lá dentro e só lá dentro arremessadas sem ordenação.
Não me consigo concentrar. Espera...Falaste?
Não fales, continua que hoje estou a gostar de espectar.
Aliás, sei que falas mas já não te ouço....Espera...Assim tenho cócegas. Na barriga não, nas pernas não, nos ombros não...Pára!
Já podes continuar. Lábios...Isso são lábios? São molhados, são ásperos, são secos, são macios...Mas não páres!
Que cheiro é este? Cheira a maresia, a pôr-do-sol, a cortiça...O que é?
Ainda bem que não falaste...Estou a desconcentrar-me...
Gosto quando gemes...só te ouço a ti...e cá dentro e...hoje fica aqui!
Dorme cá, pode ser? Mas não páres!
Já estou a confundir tudo, as sensações, as cores, os cheiros, os sons...Gosto quando gemes...só te ouço a ti...e cá dentro...o que é isto?????
Ok, pára...agora está sensível...
Abraça-me para perceber se é real, se estou ou não invisível... Não sinto as pernas, não sinto a barriga e os pés e as coxas...

sábado, 3 de janeiro de 2009

Domingos


O cigarro sempre ligado no mínimo deitado sobre o cinzeiro de cobre.

A secretária a arrotar papéis gatafunhados e a vomitar livros em lista de espera.

Um cheiro a pó com tabaco rasca cobre a casa que só dá guarida ao Domingos.

Irónico ter o nome do dia da semana, para ele, mais detestável.

Além desta casa, estava igualmente na casa dos quarenta, casa a abarrotar de gente que ele não conhece nem tenciona conhecer.

Bem parecido mas propositadamente mal arranjado, só sai de casa para comprar jornal, tabaco e para os necessários almoços e jantares no restaurante do seu condomínio.

Filho de um pai abastado, Domingos nunca precisou nem quis trabalhar e sempre se revoltou com as injecções culturais a que os pais o obrigaram desde cedo. Preferia as vacinas.

Pai escritor e mãe pintora, compareciam a tudo o que era evento cultural com o rebento atrás. Este, de seguida, ainda a mal saber escrever, tinha que entregar na semana seguinte um relatório critorioso e bem elaborado da visita, com direito a classificação rígida após atenta correcção de ambos os pais.

Aguenta até aos vinte e um em casa destes dois e quase a fazer vinte e dois, foge para longe do mundo cultural.
Inicia uma vida nova com amigos novos, televisão a cores e cinema de filmes comerciais. Nem um ano tinha passado quando percebeu que não conseguia manter amizades devido ou aos seus silêncios prolongados ou às suas conversas demais complexas.

Seguiram-se os cigarros, jornais e refeições que serviam de intervalo à leitura desenfreada e posterior escrita empenhada.

Hoje está no sofá. Ao lado, uma linda menina acompanhante de luxo que o acompanha, pela primeira vez, desde o ano em que tentou ser como os outros. O único ano da sua vida em que não esteve em abstenção.

Hoje está no sofá. Ela despe-se, ele retrai-se. Ela ri, ele chora. Ela tenta banalizar o sucedido com falinhas pouco estudadas, ele paga e acompanha-a à porta.

Irónico ter sido acompanhante de uma acompanhante de luxo.

Sentado no sofá decide, então, morrer como sabe viver.

Mas só acaba por falecer aos oitenta e um anos, vítima de um AVC. Embora conhecesse de cor todos os sintomas, foi exactamente por isso que se sentiu feliz pela primeira vez na vida e, se quis deixar morrer.

Irónico o AVC do Domingos ter sido Aversão à Vida Completa. Mas só as iniciais constaram na certidão de óbito do homem que, sem nunca o básico ter aprendido, só soube ler e escrever.