sábado, 3 de janeiro de 2009

Domingos


O cigarro sempre ligado no mínimo deitado sobre o cinzeiro de cobre.

A secretária a arrotar papéis gatafunhados e a vomitar livros em lista de espera.

Um cheiro a pó com tabaco rasca cobre a casa que só dá guarida ao Domingos.

Irónico ter o nome do dia da semana, para ele, mais detestável.

Além desta casa, estava igualmente na casa dos quarenta, casa a abarrotar de gente que ele não conhece nem tenciona conhecer.

Bem parecido mas propositadamente mal arranjado, só sai de casa para comprar jornal, tabaco e para os necessários almoços e jantares no restaurante do seu condomínio.

Filho de um pai abastado, Domingos nunca precisou nem quis trabalhar e sempre se revoltou com as injecções culturais a que os pais o obrigaram desde cedo. Preferia as vacinas.

Pai escritor e mãe pintora, compareciam a tudo o que era evento cultural com o rebento atrás. Este, de seguida, ainda a mal saber escrever, tinha que entregar na semana seguinte um relatório critorioso e bem elaborado da visita, com direito a classificação rígida após atenta correcção de ambos os pais.

Aguenta até aos vinte e um em casa destes dois e quase a fazer vinte e dois, foge para longe do mundo cultural.
Inicia uma vida nova com amigos novos, televisão a cores e cinema de filmes comerciais. Nem um ano tinha passado quando percebeu que não conseguia manter amizades devido ou aos seus silêncios prolongados ou às suas conversas demais complexas.

Seguiram-se os cigarros, jornais e refeições que serviam de intervalo à leitura desenfreada e posterior escrita empenhada.

Hoje está no sofá. Ao lado, uma linda menina acompanhante de luxo que o acompanha, pela primeira vez, desde o ano em que tentou ser como os outros. O único ano da sua vida em que não esteve em abstenção.

Hoje está no sofá. Ela despe-se, ele retrai-se. Ela ri, ele chora. Ela tenta banalizar o sucedido com falinhas pouco estudadas, ele paga e acompanha-a à porta.

Irónico ter sido acompanhante de uma acompanhante de luxo.

Sentado no sofá decide, então, morrer como sabe viver.

Mas só acaba por falecer aos oitenta e um anos, vítima de um AVC. Embora conhecesse de cor todos os sintomas, foi exactamente por isso que se sentiu feliz pela primeira vez na vida e, se quis deixar morrer.

Irónico o AVC do Domingos ter sido Aversão à Vida Completa. Mas só as iniciais constaram na certidão de óbito do homem que, sem nunca o básico ter aprendido, só soube ler e escrever.

4 comentários:

Anónimo disse...

Aversão à vida completa... um dos maiores males colectivos da nossa sociedadezinha. Ainda não existe cura.

81 é muita coisa... :P

Beijinho
Corto Maltese

Tari disse...

Corto Maltese:

Existem, sim, muitas pessoas assim mas não acho que seja um dos maiores males colectivos. Existem muitos males particulares tão maus ou piores que este (na minha humilde opinião).

81 é muita coisa, concordo.
Mas, no fundo, o Domingos devia achar que valia a pena viver até onde o destino o quis levar...

Beijinhos**

Anónimo disse...

É pá, é pá.
Gostei, gostei.

Anónimo disse...

é preciso viver a vida antes que se feixem as cortinas e o publico aplauda. aplausos para o teu texto.

beijinhos luis