O telefone toca.
A minha cabeça salta desamparada da almofada e o resto do corpo não quer acompanhar o valente despertar.
Pego o auscultador e não se ouve ninguém como de todas as outras vezes, como em todos os outros hóteis sem estrelas a que fui.
A minha perna ainda colada à tua tem o primeiro sobressaltar e afasta-se vagarosamente de ti.
Quero o teu suor, que tanto me deu ontem, bem longe de mim.
Não é nojo, é circunstância.
Levanto-me sem dar espaço para contactos matinais.
Agora Não.
O chuveiro não regula bem a temperatura e as minhas ideias estão pouco melhores. Opto pelo quente-a-escaldar.
Destapo o vidro embaciado e vejo-me hoje pela primeira vez.
Magra e com gotas por fora, podre e louca por dentro.
A porta abre-se e por momentos pensei que pudesses não ser tu.
Agora Não.
Reajo fingindo ter a pressa que não tenho e acabo de me vestir na cama de molas relaxadas que, mesmo assim, vingou-me um leve dormitar.
Sinto o fumo do cigarro. Espero que o pouses e saias daí para tirar umas passas sem que vejas.
Voltas para o quarto e fazes ecoar canções que aleijam a alma de tão cruas.
Agora Não.
Apresso a pressa uma vez mais. Espero-te lá fora.
Finalmente meto a marcha atrás e "destaciono" com destino à primeira rotunda.
Ouço-te dançar enquanto falas e a minha cabeça não apanha nem um passo que deste. Não me faças abrir a boca.
Agora Não.
Deixo-te em casa quando queria deixar-te apenas. Perder-me de ti como uma criança do norte se perde na capital enquanto o pai se distrai com a miúda de 15 anos que passa a 3 metros de si.
Apetece-me vomitar.
Chego a casa. Quem me dera que fosse minha. Nunca terei uma assim. Nunca terei nada assim.
Passa-me a má disposição mal avisto o "bacalhau com natas" que morreu só para ser comido.
Não sei há quanto tempo morreu mas dizem que o sal conserva tudo. Aliás nem sei como ainda não inventaram "banhos de sal". Afinal, com isto, acho que vou ser rica e ter uma casa como esta.
Penso na comida morta que está à minha frente mas lembro-me que só os seres vegetarianos e seus derivados pensam assim e desisto do pensamento.
Prefiro ser podre mas por outros motivos.
O telemóvel toca.
Desta vez não é vez de despertar e não atendo.
Agora Não.
Descanso, sim, na varanda a saborear o sol pouco amarelo e o vento de cheiro azul de hoje.
Fecho os olhos. Imagino, agora, seres tu o menino que o pai perdeu embriagado com os corpos verdes-brancos engarrafados que passam à sua frente. Mas acho que não perdia nada.
Os dias tocam sem perdão mas o telemóvel não. Fugiste de vez e nem sequer um fio de ti quis agarrar.
O telefone toca.
Ainda só passou uma noite. Longa mas uma. Agarro-me ao teu suor e não o quero mais largar.
Agora Não.