domingo, 2 de dezembro de 2007

Agora Não


O telefone toca.

A minha cabeça salta desamparada da almofada e o resto do corpo não quer acompanhar o valente despertar.

Pego o auscultador e não se ouve ninguém como de todas as outras vezes, como em todos os outros hóteis sem estrelas a que fui.

A minha perna ainda colada à tua tem o primeiro sobressaltar e afasta-se vagarosamente de ti.

Quero o teu suor, que tanto me deu ontem, bem longe de mim.

Não é nojo, é circunstância.

Levanto-me sem dar espaço para contactos matinais.

Agora Não.

O chuveiro não regula bem a temperatura e as minhas ideias estão pouco melhores. Opto pelo quente-a-escaldar.

Destapo o vidro embaciado e vejo-me hoje pela primeira vez.

Magra e com gotas por fora, podre e louca por dentro.

A porta abre-se e por momentos pensei que pudesses não ser tu.

Agora Não.

Reajo fingindo ter a pressa que não tenho e acabo de me vestir na cama de molas relaxadas que, mesmo assim, vingou-me um leve dormitar.

Sinto o fumo do cigarro. Espero que o pouses e saias daí para tirar umas passas sem que vejas.

Voltas para o quarto e fazes ecoar canções que aleijam a alma de tão cruas.

Agora Não.

Apresso a pressa uma vez mais. Espero-te lá fora.

Finalmente meto a marcha atrás e "destaciono" com destino à primeira rotunda.

Ouço-te dançar enquanto falas e a minha cabeça não apanha nem um passo que deste. Não me faças abrir a boca.

Agora Não.

Deixo-te em casa quando queria deixar-te apenas. Perder-me de ti como uma criança do norte se perde na capital enquanto o pai se distrai com a miúda de 15 anos que passa a 3 metros de si.

Apetece-me vomitar.

Chego a casa. Quem me dera que fosse minha. Nunca terei uma assim. Nunca terei nada assim.

Passa-me a má disposição mal avisto o "bacalhau com natas" que morreu só para ser comido.

Não sei há quanto tempo morreu mas dizem que o sal conserva tudo. Aliás nem sei como ainda não inventaram "banhos de sal". Afinal, com isto, acho que vou ser rica e ter uma casa como esta.

Penso na comida morta que está à minha frente mas lembro-me que só os seres vegetarianos e seus derivados pensam assim e desisto do pensamento.

Prefiro ser podre mas por outros motivos.

O telemóvel toca.

Desta vez não é vez de despertar e não atendo.

Agora Não.

Descanso, sim, na varanda a saborear o sol pouco amarelo e o vento de cheiro azul de hoje.

Fecho os olhos. Imagino, agora, seres tu o menino que o pai perdeu embriagado com os corpos verdes-brancos engarrafados que passam à sua frente. Mas acho que não perdia nada.

Os dias tocam sem perdão mas o telemóvel não. Fugiste de vez e nem sequer um fio de ti quis agarrar.

O telefone toca.

Ainda só passou uma noite. Longa mas uma. Agarro-me ao teu suor e não o quero mais largar.

Agora Não.

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